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Albert Camus, A Peste:
«Ao meio-dia, hora gelada, o médico, que saíra do carro, olhava de longe Grand, quase colado a uma montra cheia de brinquedos grosseiramente esculpidos em madeira. Pelo rosto do velho funcionário, as lágrimas corriam sem interrupção. E essas lágrimas perturbaram Rieux, porque as compreendia e as sentia também no fundo da sua garganta. Também ele se lembrava daquele infeliz noivado, em frente de uma loja de Natal, e de Jeanne voltada para ele para lhe dizer que estava contente. Do fundo desses anos longínquos, no próprio coração desta loucura, era certo que a voz fresca de Jeanne voltava até Grand. Rieux sabia o que pensava neste minuto aquele velho, que chorava e julgava, como ele, que este mundo sem amor era como um mundo morto e que chega sempre uma hora em que nos cansamos das prisões, do trabalho e da coragem, para reclamar o rosto de um ente e o coração maravilhado da ternura.»
Leitura complementar (posts desta série): Um; Dois; Três; Quatro.
Em A Peste, Camus coloca a dada altura o intrigante Tarrou a confidenciar ao médico Rieux a tormenta que sofre desde que aos 17 anos percebeu que o pai era responsável por assassinar vários indivíduos, em virtude do exercício da profissão de juíz. Trata-se de um discurso brilhante e em certa altura até arrepiante, de uma alma à procura de paz num mundo onde o assassínio é banal e até alegadamente justificado. A extensão desta passagem não me permite colocá-la aqui, mas revelo apenas o final:
«Ao terminar, Tarrou balouçava a perna e batia levemente com o pé no terraço. Depois de um silêncio, o médico soergueu-se um pouco e perguntou-lhe se tinha alguma ideia acerca do caminho que era preciso seguir para se chegar à paz.
- Tenho. A simpatia.»
Desde que me lembro de ser pessoa que me recordo desta fonte, encimada pela esfera armilar, no jardim de Ferreira do Zêzere. Existem até fotografias de momentos que aqui passei de que nem sequer me recordo. Até há alguns anos, sempre que atravessava o jardim em tempo de férias de Verão, nunca o fazia sem colocar os dedos de uma mão dentro da fonte, dar uma volta à mesma e depois sacudir a água antes de seguir o meu caminho. Não me lembro quando deixei de o fazer. Talvez tenha sido quando me tornei "crescido". Mas esta fonte que marca as minhas memórias de infância mais remotas, relembra-me sempre certas coisas que se solidificaram e vão solidificando na minha mente, umas mais concretas e permanentes que outras. Sempre que venho a Ferreira, há algo novo na vila, algo que mudou, algo que foi relegado para a categoria das coisas efémeras, temporárias, como quase tudo o que se vive na sociedade contemporânea. A fonte está sempre na mesma. Dá-me uma sensação de permanência, até de eternidade e de mortalidade, porquanto aquelas memórias parecem ter acontecido ontem, mas afinal algumas até ocorreram há mais de 20 anos, e a fonte aqui continua. Só através das coisas permanentes é que a vida pode ganhar sentido. No próximo Verão, quando a fonte estiver a correr, vou voltar a colocar os dedos dentro desta, dar uma volta e sacudir a água. Depois, como hoje, como ontem, como sempre, enquanto possa, vou caminhar por aí com o meu avô, vou-lhe contar os disparates que tenho feito e ele vai-me dar mais umas ideias e lições de vida. Fica sempre por saber se as aprendo ou não.
Escreveu Fernando Pessoa, no Livro do Desassossego, «E sobretudo, por amor de Deus, não tomemos a sério nada do que fazemos. Façamos uma antedescoberta da futilidade do que fazemos.» Se tudo o que fazemos é fútil, se a vida não tem sentido e, sendo assim, dos acasos que nos sucedem não podemos retirar lições, já que são apenas isso, acasos, ainda que pareçam ligados entre si e se revistam de um amargo sabor irónico que nos faz pensar nas palavras de Chesterton a todo o momento, e se esses acasos, especialmente quando são fruto de injustiças gritantes, nos roubam os sonhos e nos compelem no sentido da mera existência - por oposição à vivência - então a afirmação com que Camus principia O Mito de Sísifo ganha ainda mais força: «Só há um problema filosófico verdadeiramente sério: é o suicídio.» Escreveu Unamuno que os portugueses são um povo de suicidas. Ouvi hoje de manhã, na Antena 1, que o número de suicídios em Portugal aumentou. Provavelmente por causa da crise. O que se me afigura uma cobardia. Pôr cobro à vida por questões financeiras, por já não se conseguir viver ao mesmo nível de outrora, é próprio de espíritos fracos. Já colocar cobro à vida em virtude de um abalo existencial, é outra história completamente diferente. Surge então uma outra questão: onde é que se arranja coragem para tal? E mesmo que se consiga arranjar coragem, apresenta-se-nos ainda uma derradeira questão: e os outros que cá ficam? É que o suicídio é um egoísmo. E talvez seja nos outros que cá ficam que podemos encontrar o sentido da vida.
Leitura complementar: Do sentido da vida.
Se Hayek tem razão quando considera que a vida não tem outro propósito para além da sua própria existência, então Camus terá razão em considerar o suicídio como o único problema filosófico verdadeiramente sério. Nestes estranhos tempos em que vivemos, o "perigo de todo os perigos", como assinalou Nietzsche, é "nada mais ter sentido." E talvez seja por a vida não ter sentido que, segundo Oscar Wilde, a maioria de nós limita-se a existir, não vivendo. Se assim é, só podemos escapar ao absurdo da existência da vida pelo suicídio ou pela esperança, como Camus aponta. Não lhe escapando, somos compelidos no sentido da revolta, que surge "do espectáculo do irracional a par com uma condição injusta e incompreensível." "Eu revolto-me, logo existo", escreveu o filósofo francês. Alguns dirão que calar a revolta será sinal de maturidade. A mim afigura-se-me antes como um suicídio do pensamento. E eu ainda prefiro continuar a viver, mesmo que tenha que me submeter para sobreviver. Até um dia.