Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]
Almocei hoje com o meu pai no Atrium Saldanha, num local a abarrotar de devoradores de saladas, sandecas-cacete e comida ao quilo. Confesso que me agrada a variedade e ao contrário do que se possa pensar, não se come mal, se soubermos escolher.
À saída, tivemos conhecimento de uma exposição patente nas imediações e assim, lá decidimos visitá-la, até porque o anúncio prometia. De facto, dela não saímos defraudados na expectativa.
Os quadros eram de uma impressionante riqueza cromática e as figuras humanas, um misto de todo o burlesco presente em todas as épocas da pintura europeia. Estranhas personagens faziam em pleno, uma súmula dos fácies exibidos pela arte de um Bruegel, Honoré Daumier ou Paula Rego. Alguns dos temas exibiam uma forte influência da visão sombria emprestada pelo pincel de Goya nas suas imagens dos Desastres da Guerra, percebendo-se igualmente algumas reminiscências das telas exibidas no Carnavalet e que evocam o sangrento período dos acontecimentos de 1789-94.
Bocanhonhas desdentadas, ou pelo contrário, com reluzentes dentolas acrílicas, recordando--nos o brutamontes dentes-de-ferro das aventuras 007 dos anos 60, além de um autêntico e imaginativo desfile de roupagens de outros tempos, hoje presentes apenas em remotas áreas do planeta, onde preponderam os coletes aos quadrados, calças à boca de sino e artificialmente ajustadas a uma quádrupla barriga pendente de um alegado esfomeado, saias-saco de bruxa plissadas em terylene negro, camisas abertas até à já inexistente cintura, pesadas correntes metálicas à volta do pescoço, patas de coelho em metal dourado e usadas como sofisticado adereço porta-chaves, bonés de pala presilhada, os inevitáveis e risivelmente desportivos bonés á la mitra, chapéus de feltro, sacos plásticos cheio de comes e bebes, um ou outro cajado, saiotes sobre calças, esquisitas chancas nos pés, cabeleiras hirsutas, bigodes zapatistas e bochechas patilhudas. Maguerres e mamparras aos magotes, carrancas patibulares de moita-carrasco, desproporcionadas dimensões físicas de uma impressionante variedade e toda a inverosímil probabilidade. Inacreditável. Que grande artista é o autor, que imaginação e esmagador poder de impressionar o visitante.! Sendo uma exibição interactiva, o ruído de fundo era infernal, num misto de pregões de bazar e velhas marchas ou baladas remotamente revolucionárias, a par de um colossal chorrilho de ordinarices, dichotes chocarreiros e impublicáveis, além dos previsíveis e revoltantes insultos. No mundo em que vivemos, é normal ser-se feio ou bonito, alto ou baixo, gordo ou magro, mas estes modelos de excepção são apenas isto mesmo. Únicos.
Não sei onde o pintor encontrou tantos e tantos modelos de um calibre tal, que apenas poderão ombrear com a imagem que para sempre terei da discoteca estelar incluída na série Star Wars, onde um Luke Skywalker passa uns momentos no meio de inenarráveis - mas simpáticas - criaturas de outro mundo. Em contraste com o que hoje vi, onde a simpatia era coisa tão rara como água no Saara.
É certo que a perícia do artista poderá ser criticada sob o ponto de vista da falta de originalidade, pois se as mulheres parecem meras cópias dos tracanazes e mastronças que Paula Rego sangrentamente expõe, os homens, esses, são um misto dos comedores de batatas de Van Gogh, com os idos pequeno-burgueses oitocentistas de Daumier. Nem uma cara lavada, sã e simpática do bom camponês de sempre. Nem uma citadina figura anónima ou discreta que exale confiança. Nada que evoque a tranquilidade do pacato dia a dia, mas apenas uma inquietante e plena ausência daquilo que julgamos ser a gente do nosso tempo. Parece que este pintor retrata um Portugal desconhecido e perdido para lá das brumas da memória.
Deixei o meu pai à boca do metro do Marquês. Uns vinte minutos de visita a uma inesperada exposição de cruel neo-realismo resistente, deixou-nos cabisbaixos e amarfanhados pela surpresa.
O emérito autor? A CGTP.