Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]
Com o spin em alta rotação a presentear-nos com leituras e interpretações dos resultados eleitorais para todos os gostos, observo que continuamos a ser uma democracia deficitária, com cidadãos menorizados a serem exclusivamente chamados a ratificar o que os directórios partidários decidem à porta fechada. Assim se explica que muitos dos eleitos do PS e do PSD sejam ilustres desconhecidos e/ou meros caciques e que as respectivas listas tenham sido encabeçadas por péssimos candidatos - por mais que os seus correligionários nos queiram convencer do contrário. Com a honrosa excepção do Livre - não obstante o resultado das suas eleições primárias ter desagradado a direcção -, o recrutamento político continua a fazer-se em circuito fechado, e para os partidos do centrão as eleições europeias servem para pouco mais do que promover alguns boys and girls e/ou incómodos reais ou potenciais para o chefe. Infelizmente, os nossos políticos de vistas curtas não sabem fazer melhor. Por último, destaco a descida do Chega e a vitória da Iniciativa Liberal, o único partido que cresceu quer em termos absolutos quer em percentagem e, portanto, o único, para além do PS, que se pode afirmar como vencedor nestas eleições.
Lá fora, ainda não foi desta que a onda populista se tornou tsunami.
Cá dentro, à esquerda, se um partido no governo, com um péssimo cabeça de lista, consegue este resultado, imagine-se o que não conseguirá nas legislativas se as circunstâncias sociais e políticas se mantiverem estáveis; à direita, se esta não for capaz de se entender, de gerar um projecto inovador e agregador, de concorrer a eleições em coligações amplas, dificilmente voltará a ser governo nos próximos anos - e não será com as lideranças de Rio e Cristas, ambos sem ideias para o país e com o carisma de uma couve de Bruxelas, e ignorando ou descurando o potencial da Aliança e da Iniciativa Liberal, que conseguirá conquistar o poder.
A grande vencedora, porém, continua a ser a abstenção, que, como é habitual, foi vilipendiada durante toda a noite por vários políticos e políticos-comentadores. A este respeito, e em modo telegráfico, saliento apenas que os sistemas partidário e eleitoral portugueses são bastante elitistas, fechados, pouco representativos da sociedade portuguesa e avessos à participação política. Podemos sempre colocá-los em perspectiva histórica e levar em consideração as condicionantes com que se defrontou uma recente e frágil democracia nos anos seguintes ao 25 de Abril de 1974. Mas passados 45 anos, temos partidos-cartel que dificultam a entrada de novos partidos no jogo democrático, não há a possibibilidade de candidaturas independentes à Assembleia da República, o mandato livre dos deputados é, na verdade, um mandato imperativo pertencente aos partidos que impõem uma profundamente anti-democrática disciplina de voto, não há eleições primárias nos partidos, não temos voto preferencial, não temos círculos uninominais e a tão propalada reforma do sistema eleitoral é mero ornamento de programas eleitorais de partidos que, obviamente, nunca irão abdicar voluntariamente de um sistema que lhes dá o poder que detêm e lhes permite continuarem a desdenhar a sociedade civil. A representação é cada vez mais ténue e a participação política para a generalidade da população, porque os partidos assim o querem, limita-se ao voto em listas previamente feitas pelas máquinas partidárias, ou seja, a uma mera ratificação do que os partidos decidem à porta fechada. É claro que há pessoas que têm pouco ou nenhum interesse pela política, mas colocar inteiramente o ónus da abstenção na generalidade dos portugueses, demitindo-se os partidos de quaisquer responsabilidades pelo actual estado de coisas, é, no mínimo, incorrecto e injusto. Por tudo isto, de cada vez que oiço da boca de políticos, em noites eleitorais, a ladainha da abstenção e do desinteresse dos portugueses pela política, apetece-me logo puxar da pistola. Isto é assim e continuará a ser assim porque os partidos querem que assim seja.
Como defensor dos arranjos e práticas estabelecidos pelo costume, pela convenção, pela tradição na política, sou, naturalmente, favorável a que se forme um governo PSD e CDS, porquanto foi a coligação Portugal à Frente que saiu vencedora das eleições legislativas de 4 de Outubro. A prática estabelecida - e, poder-se-á dizer, o acordo de cavalheiros entre os partidos do arco da governação -, é a de que quem ganha as eleições forma governo, mesmo que com minoria relativa, e procura no parlamento apoio para a sua governação, como por exemplo, a abstenção em relação ao Orçamento do Estado por parte do partido ou partidos do arco da governação que se encontrem na oposição, como faz parte do acordo de cavalheiros.
António Costa pretende agora que se rasguem estes costumes e se introduza uma inovação no nosso sistema político-partidário, inspirando-se nos exemplos de outros países europeus, em que passaria a governar apenas o partido ou coligação pré-eleitoral que conseguir obter uma maioria absoluta nas eleições ou os partidos que, saindo derrotados das eleições ou em que um deles apenas obtenha uma maioria relativa, e sem que tenham proposto ao seu eleitorado coligarem-se para formar governo, acabem por chegar a um entendimento para formar governo.
Isto implica, naturalmente, uma transformação estrutural no nosso sistema político-partidário, ainda que permitida pela Constituição. Abrindo-se este precedente, torna-se claro que, muito provavelmente, acaba-se a possibilidade de termos governos minoritários e institui-se a prática de passarmos a ter apenas governos sustentados por uma maioria absoluta no parlamento, independentemente de quem ganhe as eleições.
Mas as transformações estruturais não se ficam por aqui. Rasgado o acordo de cavalheiros por Costa e encetadas negociações para a formação de um governo sustentado no apoio do PS, BE e PCP, a linha que demarcava o arco da governação dos partidos extremistas e utópicos esbate-se e, pelos sinais que dão, BE e PCP até podem estar prestes a defraudar também os seus eleitorados, enfiando na gaveta algumas das suas bandeiras mais marcantes, como a saída do euro, a reestruturação da dívida pública ou a saída da NATO.
Tudo isto é possível e não deixará de ter repercussões com consequências ainda imprevisíveis no futuro dos partidos políticos portugueses, em especial os partidos à esquerda. Se PCP e BE deixarem de ser partidos de protesto e passarem a ser partidos de governo, acabarão, muito provavelmente, por esvaziar a sua base eleitoral. Por outro lado, os socialistas moderados, que, arrisco, são a maioria dos que compõem quer o PS, quer a sua base de simpatizantes, ver-se-ão numa crise identitária, na medida em que, muito provavelmente, não gostarão de ver o PS coligar-se com PCP e BE e também aqui as consequências são, para já, imprevisíveis, mas poderão passar pela fundação de outros partidos ou por se juntarem ao PSD ou ao CDS.
Ora, como assinalou o conservador Edmund Burke, "We must all obey the great law of change. It is the most powerful law of nature, and the means perhaps of its conservation." A mudança pode, por isso, ser acomodada, mas seria útil que se introduzisse um factor de maior estabilidade e previsibilidade no que concerne à formação do governo. É que deixando de ser natural que quem ganhe as eleições forme governo - a não ser que os resultados eleitorais ditem logo uma maioria absoluta -, torna-se mais morosa a formação do governo, podendo inclusivamente passar-se por situações em que as negociações não cheguem a bom porto e não se consiga, por isso, formar um governo com maioria absoluta no parlamento. Assim sendo, concordo inteiramente com Nuno Garoupa: "Seria também importante no compromisso das próximas semanas incluir uma alteração à lei eleitoral (e ao Artigo 149 CRP se assim o entenderem) de forma que haja a eleição direta de 200 deputados e o partido com mais votos leva um bónus de 30 deputados. Ganhamos todos com a estabilidade. E clarifica de uma vez por todas quem ganha e quem perde. Caso contrário, continuaremos embrulhados e perde o país."
O IDL - Instituto Amaro da Costa realiza dia 14 de Julho, terça-feira, pelas 19H00, mais uma sessão de "À volta dos livros". Nesta sessão será apresentado o livro "O Sistema Eleitoral Português, Crónica de uma Reforma Adiada" pelo seu autor, Nuno Sampaio.
Ainda há dias escrevia aqui sobre como o sistema político-partidário português é muito pouco ou nada representativo, pelo que o povo nunca foi quem mais ordenou. Congratulo, por isso, os autores e subscritores do Manifesto hoje publicado cuja orientação vai precisamente no sentido de melhorar o nosso regime democrático. Aqui fica na íntegra:
Manifesto pela Democratização do Regime
«A tragédia social, económica e financeira a que vários governos conduziram Portugal interpela a consciência dos portugueses no sentido de porem em causa os partidos políticos que, nos últimos vinte anos, criaram uma classe que governa o País sem grandeza, sem ética e sem sentido de Estado, dificultando a participação democrática dos cidadãos e impedindo que o sistema político permita o aparecimento de verdadeiras alternativas.
Neste quadro, a rotação no poder não tem servido os interesses do Povo. Ela serve sobretudo para esconder a realidade, desperdiçando a força anímica e a capacidade de trabalho dos portugueses, bem como as diversas oportunidades de desenvolvimento que o País tem tido, como aconteceu com muitos dos apoios recebidos da União Europeia.
A obsessão do poder pelo poder, a inexperiência governativa e a impreparação das juventudes partidárias que, com inusitada facilidade e sem experiência profissional ou percurso cívico, chegam ao topo do poder político, servem essencialmente objectivos e interesses restritos, nacionais e internacionais, daqueles que utilizam o Estado para os seus próprios fins.
O factor trabalho e a prosperidade das pessoas e das famílias, base do progresso da Nação, são constantemente postos em causa pela austeridade sem desígnio e pelos sacrifícios impostos aos trabalhadores, como se fossem eles, e não os dirigentes, os responsáveis pelo desgoverno do Estado e pelo endividamento excessivo a que sucessivos governos conduziram Portugal.
Como se isso não bastasse, o poder político enveredou pela afronta de culpar os portugueses, procurando constantemente dividi-los: os mais novos contra os mais velhos, os empregados contra os desempregados, os funcionários públicos contra os trabalhadores do sector privado.
A Assembleia da República, sede da democracia, desacreditou-se, com os deputados a serem escolhidos, não pelos eleitores, mas pelas direcções partidárias, que colocam muitas vezes os seus próprios interesses acima dos interesses da Nação. A Assembleia da República representa hoje sobretudo – com honrosas excepções – um emprego garantido, conseguido por anos de subserviência às direcções partidárias e de onde desapareceu a vontade de ajuizar e de controlar os actos dos governos.
A Nação portuguesa encontra-se em desespero e sob vigilância internacional. Governos sem ideias, sem convicções, sem sabedoria nem estratégia para o progresso do País, colocaram os portugueses numa situação de falência, sem esperança, rumo ou confiança. O Estado Social está a desmoronar-se, mais do que a racionalizar-se, deixando em angústia crescente centenas de milhares de desempregados e de novos pobres.
E não é apenas o presente que está em desagregação. É simultaneamente o futuro de dezenas de milhares de jovens sem emprego ou com salários que não permitem lançar um projecto de vida.
Só por incompetência partidária e governativa se pode afirmar que os portugueses têm vivido acima das suas posses -como se as posses de milhões de famílias que recebem menos de mil euros por mês fosse o problema- ou que não existem alternativas aos sacrifícios exagerados impostos aos mais pobres e à classe média.
É urgente mudar Portugal, dando conteúdo positivo à revolta e à crescente indignação dos portugueses. As grandes manifestações já realizadas mostraram de forma inequívoca o que milhões de portugueses pensam do sistema político e da nomenclatura governativa.
Há uma diferença dramática entre os políticos que pensam na próxima geração e os que pensam sobretudo na próxima eleição. A sociedade portuguesa tem naturalmente respeito pelas figuras políticas e pelos partidos que foram determinantes no regresso do País a um Estado de Direito Democrático. E pelos políticos que, com visão, souberam recolocar Portugal na Europa.
O que está hoje em causa já não é a opção pela democracia, mas torná-la efectiva e participada. Já não está em causa aderir à Europa, mas participar no relançamento do projecto europeu. Não está em causa governar, mas corrigir um rumo que nos conduziu à actual crise e realizar as mudanças que isso implica.
Todavia, nada será possível sem um processo de reformas profundas no Estado e na economia, reformas cujos obstáculos estão, em primeiro lugar, nos interesses de uma classe política instalada e na promiscuidade entre o poder político e os interesses financeiros.
Impõe-se uma ruptura, que a nosso ver passa por três passos fundamentais:
- Em primeiro lugar, por leis eleitorais transparentes e democráticas que viabilizem eleições primárias abertas aos cidadãos na escolha dos candidatos a todos os cargos políticos;
- Em segundo lugar, pela abertura da possibilidade de apresentação de listas nominais, de cidadãos, em eleições para a Assembleia da República. Igualmente, tornando obrigatório o voto nominal nas listas partidárias;
- Em terceiro lugar, é fundamental garantir a igualdade de condições no financiamento das campanhas eleitorais. O actual sistema assegura, através de fundos públicos, um financiamento das campanhas eleitorais que contribui para a promoção de políticos incompetentes e a consequente perpetuação do sistema.
Esta ruptura visa um objectivo nacional, que todos os sectores da sociedade podem e devem apoiar. Alterar o sistema político elimina o pior dos males que afecta a democracia portuguesa. Se há matéria que justifica a união de todos os portugueses, dando conteúdo às manifestações de indignação que têm reclamado a mudança, é precisamente a democratização do sistema político.
É urgente reivindicar este objectivo nacional com firmeza, exigindo de todos os partidos a legislação necessária. Queremos que eles assumam este dever patriótico e tenham a coragem de –para o efeito– se entenderem. Ou então que submetam a Referendo Nacional estas reformas que propomos e que não queiram assumir. Os portugueses saberão entender o desafio e pronunciar-se responsavelmente.
Entretanto, os signatários comprometem-se a lançar um movimento, aberto a todas as correntes de opinião, que terá como objectivo fazer aprovar no Parlamento novas leis eleitorais e do financiamento das campanhas eleitorais.
A Pátria Portuguesa corre perigo. É urgente dar conteúdo político e democrático ao sentimento de revolta dos portugueses. A solução passa obrigatoriamente pelo fim da concentração de todo o poder político nos partidos e na reconstrução de um regime verdadeiramente democrático.»
Nos últimos anos, vários partidos encomendaram vários estudos sobre a reforma do sistema eleitoral. Os diagnósticos e as propostas estão feitos, mas os partidos continuam a preferir metê-los na gaveta. Agora decidiram também recusar uma iniciativa que visa a possibilidade de "cidadãos independentes poderem concorrer à Assembleia da República sem estarem alinhados em listas partidárias". E é assim que uma democracia que de representativa tem muito pouco se vai bloqueando a ela própria. O estado é deles, o estado são eles. O povo que se lixe. Comam brioches e aguentem ou emigrem.
Por isso permite-me discordar do teu post, bem como, na mesma linha, deste artigo de João Pereira Coutinho. Na realidade, o argumento tantas vezes brandido, especialmente à direita, de que a Assembleia da República resulta da expressão da vontade popular, procurando-se desta forma desqualificar todo e qualquer movimento da sociedade civil, é falacioso. Em primeiro lugar, não deixa de ser irónico ver este argumento brandido pela direita que se diz liberal... Ou talvez não seja tão surpreendente, tratando-se, mais uma vez, da direita que em Portugal não se consegue organizar para nada - até para governar o país mal se consegue organizar - e por isso inveja a esquerda por estar bem organizada. Em segundo, cansa ver este argumento tantas vezes embandeirado em arco, como se o sistema eleitoral português fosse sequer representativo da nação e não o distorcido e perverso produto de partidos políticos que capturaram o estado (partidos-cartel, na acepção de Katz e Mair), que já de si padecem de graves deficiências ao nível da democraticidade interna, e que através de um sistema eleitoral muito pouco democrático e de um elevado grau de centralização no que diz respeito ao recrutamento político apenas apresentam aos eleitores factos consumados, isto é, os eleitores procedem apenas à legitimação posterior de decisões e listas feitas a priori. Cansa ver este argumento tantas vezes brandido, especialmente por quem sabe muito bem, ou deveria saber, o que acabo de mencionar. Afinal, Moisei Ostrogorski e Robert Michels há já muito tempo que observaram as características comportamentais dos partidos políticos. E estas permanecem imutáveis.
Permite-me ainda deixar uns excertos de um breve ensaio teórico da minha lavra sobre representação política e recrutamento parlamentar:
Em primeiro lugar, o modelo mais descentralizado, que toma o nome de internas abertas ou open primaries, é o que permite ao eleitorado ter um papel preponderante quanto à escolha final dos candidatos. Embora a capacidade de iniciativa seja uma prerrogativa dos partidos, acontece que todos "os membros da comunidade política com capacidade eleitoral activa podem propor e/ou eleger os candidatos de um determinado partido político, de entre um conjunto de candidatos apresentados por este". Desta forma, os candidatos são, inicialmente "aspirantes" a candidatos, visto que a sua confirmação está dependente da vontade manifestada pelo eleitorado. Esta é uma realidade estranha aos países europeus, mas tradicional do sistema político dos Estados Unidos da América, em que os partidos "submetem as suas escolhas internas ao controlo externo, independentemente de critérios de filiação partidária". Entre as várias razões para esta estranheza por parte dos europeus, é de salientar, como o faz a autora, uma certa tendência oligárquica que torna a salvaguarda da disciplina partidária um imperativo para o funcionamento dos sistemas de governo da Europa Ocidental, o que significa, em última análise, que as principais decisões quanto ao recrutamento dos representantes parlamentares competem essencialmente aos partidos, que levam em consideração, essencialmente, a filiação e a posição que os candidatos ocupam na estrutura interna do partido. Assim, os eleitores procedem apenas à legitimação posterior de decisões e listas feitas a priori.
(...)
O terceiro modelo, caracteriza-se pelo facto de a decisão quanto à escolha dos candidatos recair sobre estruturas locais e/ou regionais dos partidos. Os militantes de base não intervêm directamente no processo, como acontece nos dois modelos anteriormente enunciados, sendo este controlado e mediado por “órgãos partidários de carácter colegial, com responsabilidades deliberativas e executivas, ao nível regional e/ou local". A viabilidade deste modelo, que se constitui como o mais generalizado na Europa Ocidental, está directamente relacionada com o sistema eleitoral adoptado, tendo ainda consequências bem distintas dos anteriores no que diz respeito à vida intrapartidária e à relação entre eleitos, partidos e eleitores. Na realidade, embora o aparente grau de descentralização que perpassa este modelo possa ser visto como uma forma de garantir uma maior democraticidade do processo de recrutamento, a verdade é que, como assinala a autora, "como já os autores clássicos faziam notar, as tendências oligárquicas, burocráticas e clientelares não constituem uma «patologia» que se manifesta exclusivamente ao nível das cúpulas nacionais, podendo assumir contornos bastante mais acentuados e difíceis de combater à medida que descemos na hierarquia partidária".
(...)
Sendo certo que não há um modelo único que se possa aplicar a todo e qualquer regime democrático, também a cultura política contribui de forma determinante para os critérios que presidem à aplicação do princípio da representação e, em decorrência destes, organizam-se processos de recrutamento político que podem ser caracterizados como mais ou menos democráticos, centralizados ou descentralizados, formais ou informais. Não será, por isso, de estranhar que na literatura comparada sobre a Teoria e Prática da Democracia, os Estados do sul da Europa surjam sempre como os menos democráticos, onde, ao nível das organizações partidárias e da democraticidade interna destas quanto aos processos de decisão, o recrutamento das elites parlamentares tende a ser centralizado e pouco formal, ou seja, com regras pouco precisas quanto ao seu funcionamento, reforçando, portanto, a personalização do poder no líder, quando não mesmo a tendência oligárquica das direcções nacionais dos partidos.
Nos últimos dias, o CDS tem andado nos jornais e na Internet por dois motivos, como toda a gente sabe: o voto contra o novo Código do Trabalho de Ribeiro e Castro, por um motivo que apoio em toda a linha, a resistência à eliminação do feriado do 1.º de Dezembro, e a carta de 12 Conselheiros Nacionais que pretendiam ver reafirmados os princípios do partido no que às chamadas “causas fracturantes” (não gosto da terminologia, mas é o que temos para nos fazermos compreender) diz respeito.
Deixando de lado considerações e juízos sobre o conteúdo destes dois factos, fico genuinamente contente por assistir aos debates que estes estão a gerar, que significam várias coisas, nomeadamente, que o partido está bem vivo e pujante na sua reflexão ideológica e intelectual, que este é efectivamente um partido que se preocupa mais em discutir ideias do que pessoas, e que está a tornar-se maior, mais representativo do eleitorado, mais transversal à sociedade portuguesa. O facto de existirem divergências ideológicas no seu interior é apenas natural, e será saudável para um partido que se quer cada vez maior saber conviver com a pluralidade que advém de acolher no seu seio três pilares ideológicos que, se têm muitos pontos de convergência, também têm outros de divergência.
Mais, não tendo o restante espectro partidário português capacidade para estes debates verdadeiramente importantes e que estão para lá do economês – PSD e PS, como catch-all parties que são, pouco ou nada se preocupam com questões filosóficas e ideológicas, sendo as parcas produções intelectuais no domínio da social-democracia verdadeiramente confrangedoras, e BE e PCP vivem noutra realidade intelectual que economicamente já foi mais do que provada como errada e, do ponto de vista da teoria social, representam exactamente as escolas teóricas de certezas absolutas contrárias ao que poderá sair dos debates internos do CDS –, é com muito agrado que vejo diversas pessoas interessarem-se e debaterem temáticas que são de todo o interesse para o futuro da sociedade portuguesa.
E que temáticas são as que estes dois factos levantam? Em primeiro lugar, a questão do mandato livre vs. mandato imperativo, debate em relação ao qual, embora historicamente tenham os defensores do primeiro saído vencedores, importa ressalvar que com a organização de grandes aparelhos partidários ocorreu o fenómeno da frequente imposição de uma restritiva disciplina de voto aos representantes eleitos, sendo a essência do mandato livre subvertida. Na prática, um deputado eleito através de um partido recebe o mandato não dos eleitores mas do partido, que pode punir o representante através da revogação desse mandato quando este ignore a disciplina partidária, que se torna, na verdade, um substituto do mandato imperativo do eleitorado. Daqui, salta logo à vista que é incoerente quem critica Ribeiro e Castro por votar de acordo com a sua consciência (numa questão que devia envergonhar toda a bancada do CDS, diga-se de passagem, se for na realidade “radicalmente patriótica”, como há umas semanas ouvi Telmo Correia dizer que o CDS é) e ao mesmo tempo defende que noutras matérias os deputados possam votar livremente. Assim como é incoerente defender a atitude de Ribeiro e Castro e simultaneamente atacar os que nas tais outras matérias votam de acordo com a sua consciência. O argumento de que há coisas onde a liberdade de voto deve ser dada e outras não, não colhe, porque qualquer critério de verdade que possa definir substantiva e positivamente estas matérias tende a tornar-se absoluto, exclusivo e a ser contraproducente, isto é, afrontando e eventualmente afastando militantes e simpatizantes do CDS. Como é que isto se resolve? Simples, ou se acaba com a liberdade de voto de vez e o CDS se torna num PCP onde impere o centralismo democrático, ou se faz o moralmente correcto que é acabar com a disciplina de voto. E todos sabemos o que isto significa e o que se lhe deve seguir: a reforma do sistema eleitoral, com a introdução de círculos uninominais, desta forma minorando o défice de representatividade de que a democracia portuguesa enferma, tornando os partidos menos caciquistas e os eleitos verdadeiramente representativos dos eleitores e fiscalizados por estes. PS e PSD muito dificilmente avançarão com isto, pois os interesses instalados têm demasiada força, embora frequentemente encomendem estudos e anunciem intenções de o fazer. Se o CDS conseguir colocar novamente este debate na agenda mediática e contribuir para precipitar esta reforma, poderemos assistir a uma excelente evolução do sistema político português.
E em segundo lugar, não pretendendo entrar em temáticas nas quais não sou versado, creio que no contexto do racionalismo moderno e do relativismo pós-moderno, a chave para lhes responder filosófica e politicamente se encontra nos três pilares ideológicos do CDS. Porquê? Porque como escrevi noutro post, a modernidade produziu um enquadramento que é altamente destrutivo das tradições intelectuais e morais europeias, que através do racionalismo construtivista e do relativismo produz morais inviáveis, ou seja, sistemas de pensamento moral incapazes de sustentar qualquer ordem social estável, que através de teorizações sociológicas contemporâneas e da corrupção da arquitectura e das artes (como Roger Scruton e John Gray demonstram) criam um clima cultural que é profundamente hostil à tradição e também à sua própria existência. Confrontamo-nos, assim, com uma cultura que tem ódio à sua própria identidade, tornando-se, em larga medida, efémera e provisória. Este quadro deriva essencialmente da inspiração do Projecto Iluminista, à luz do qual os autores modernos e pós-modernos desenvolveram um caos moral, em que o abuso da razão, o objectivismo e o relativismo criaram um ambiente cultural, social e intelectual que é inimigo da tradição. Ao proporem ancorar a moralidade no racionalismo, o positivismo, o cientismo, o historicismo e o cepticismo conduziram naturalmente ao niilismo, construtivismo e planeamento social, e, consequentemente, ao utilitarismo e emotivismo. A rejeição de qualquer tipo de instituição ou código de comportamento que não seja racionalmente justificado parece ser uma característica distintiva da modernidade, e para responder a isto é necessário recorrer às ideias de tradição e evolução, que estão no centro dos pilares ideológicos do CDS. Só apelando a estas e debatendo as questões em causa com abertura de espírito podemos esperar fazer frente ao quadro político e cultural que domina Portugal e o Velho Continente.
Por tudo isto, apenas desejo que os debates continuem e que o CDS dê o exemplo aos restantes partidos de como um partido político pode e deve reflectir filosoficamente sobre matérias que nos interessam a todos.