Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]
Existem muitas obras que tratam da história do dinheiro, das divisas e dos sistemas financeiros. Nial Ferguson, autor de The Ascent of Money, entre outros livros, oferece uma visão panorâmica da genealogia da moeda, das finanças e do crédito. Mais à esquerda dessa leitura académica, poderemos visitar a obra do norte-americano David Graeber - Debt, the first 5000 years, que lida com a mesma massa, mas a partir do prisma do endividamento individual e colectivo das nossas sociedades. As divisas digitais - cryptocurrencies -, apoiadas em conceitos complexos como blockchains e ledgers, chegaram em força a esta "terceira vaga" financeira. A febre do Bitcoin, Ethereum ou Litecoin, não me parece contudo uma manifestação anormal, excêntrica. Pensemos desapaixonadamente, sem nos alongarmos muito em termos temporais, no ouro e na prata, no padrão-ouro, na convertibilidade e fim da convertibilidade do USD em ouro, nos cartões de crédito, nas transferências electrónicas de divisas, no high-frequency trading, no mercado de futuros, nos special investment vehicles, nos swaps, nos derivatives, ou mesmo nos inofensivos exchange-traded funds (ETF). Todas estas manifestações ou representações de riqueza, provocaram, em cada um dos seus tempos, espanto e desconfiança. No entanto, a sua inevitabilidade foi maior do que vontades parcelares, tantas vezes sinónimo de posições políticas respeitantes ao controlo dos mercados e seus agentes. Assistimos hoje à Primavera árabe das divisas. Pela primeira vez na história moderna, os indivíduos escapam ao escrutínio e controlo de instituições financeiras na sua acepção convencional e tributária. A toada especulativa de que enferma o Bitcoin, corresponde, em grande medida, à máxima de Greenspan - irrational exuberance. Mas não há nada que se possa fazer: o feitiço foi quebrado - em definitivo. Poderemos retratar a rápida propagação das divisas digitais como um processo de democratização maciço do controlo detido sobre os meios financeiros - são os indivíduos que decidem, são as pessoas que alocam o seu dinheiro, passando ao lado dos bancos - até quando, veremos. Os grandes actores de Wall Street, da Reserva Federal ou do Banco Central Europeu, vêem com olhos de suspeição a avalanche que os apanhou de surpresa, mas já não há nada a fazer - o comboio já partiu. Chegou-me aos ouvidos que contratos de futuros de Bitcoins e pelo menos um ETF serão emitidos muito em breve por forma a arrastar para o mainstream financeiro estas divisas consideradas freaks do sistema monetário. Por outras palavras, e em suma, a força irresistível das divisas digitais não deve ser considerada uma anomalia. O fenómeno consta já da história financeira do mundo. E ninguém disse que a viagem não seria turbulenta. As divisas, em princípio, não deveriam carregar nuances ideológicas sobre as suas faces, mas, sem margem para dúvida, reconhecemos facilmente a natureza libertária desta expressão de riqueza. Se tudo isto torna o homem mais independente, apenas o tempo dirá - fait vos jeux.
Enquanto Maria de Belém, Sampaio da Nóvoa ou Marcelo Rebelo de Sousa brincam às presidenciais, e António Costa e Mário Centeno jogam à apanhada do governo, algo muito mais avassalador está a fermentar no caldeirão da economia e do sistema financeiro internacional. Desde 2008 que os bancos centrais, um pouco por todo o mundo, mas em particular aqueles da Zona Euro e dos Estados Unidos, têm vindo a ser utilizados enquanto muleta das economias mais afectadas pela crise de crédito iniciada pela Lehman Bros., fazendo uso de munição mais ou menos convencional, na forma de injecção de liquidez nos mercados de dívida principais ou secundários, e contribuindo simultaneamente para a valorização ficcionada dos títulos transaccionados em bolsa. Findo este período de inflacionamento do valor das acções e a concessão de uma imagem de aparente saúde económica, e à medida que são removidos os mecanismos de estímulo iniciados pelos banqueiros centrais, os aspectos fundamentais da economia vieram à tona para revelar uma certa anemia, ou mais realisticamente, a sua genuína fragilidade. E é precisamente aqui que nos encontramos. As taxas de juro a zero, ou perto do mesmo, não permitem grande margem de manobra aos bancos centrais. Por outras palavras, a munição acabou, e o momento da verdade, do reajustamento da relação entre os mercados financeiros e a economia chegou com alguma intensidade para indicar a expressão de uma verdadeira tempestade de volatilidade. Para além destes dissabores, do domínio económico e financeiro, há que contar com medidas expansionistas e gastos desproporcionais da parte de governos de inspiração populista ou de Esquerda, como parece ser a troupe liderada por António Costa. E Portugal corre, deste modo, perigos reais; a ameaça de um desastre ainda maior do que aquele proporcionado pela natural apetência ideológica de um governo que sustenta a sua acção na ideia de rolling debt, ou seja, a ideia de que a dívida seguinte pode cobrir parte da precedente e assim sucessivamente. António Costa deve julgar que controla as operações, mas, efectivamente, não controla nada. Deve pensar que a época dos banqueiros centrais de mãos largas não tem fim, que representa um elemento crónico na condução da política monetária da Zona Euro. Estas considerações ingénuas e de índole socialista, colocam Portugal na mira de (des)investidores que pressentem a insustentabilidade do projecto governativo nacional. O que já está a decorrer nas bolsas de todo o mundo, indica, sem margem para dúvida, grande turbulência nos próximos tempos. António Costa pode ter conquistado o governo com artimanhas parlamentares, mas o que aí vem estravasa o tamanho da sua esperteza. Para fazer face ao que aí vem, é preciso bastante mais do que um ex-presidente de câmara.
Eu sei que a Turquia e a África do Sul estão a grande distância física de Portugal. Mas esse facto não deve ser subestimado. A mera sugestão de abrandamento do programa de estímulo financeiro levado a cabo pela Reserva Federal dos EUA ( na ordem dos 10 mil milhões de dólares), foi mais que suficiente para fazer subir as taxas de juro e gerar ondas de choque naqueles dois países. Este sintoma de pânico moderado não deve ser ignorado. Serve de indicador para efeitos que se farão sentir noutras paragens à medida que o preço do dinheiro retomar a sua via ascendente. São externalidades desta natureza que me preocupam especialmente. Os políticos europeus, nos quais incluo os portugueses, parecem fazer contas de somar sem levar em conta eventos excêntricos. A subida de taxas de juro "per se" causa desgaste em economias emergentes, ou nas desenvolvidas, já de si debilitadas pelas agruras da crise que começou a ganhar expressão em 2008. A subida das taxas de juro afectará as empresas que desejam reunir as condições de financiamento para dar continuidade às suas operações ou aquelas que pretendem realizar start-ups. São desalinhamentos desta natureza, assimetrias deste género, que poderão fustigar as boas intenções daqueles que sonham com a saída do programa de assistência a 17 de Maio deste ano. Por outras palavras, tenho dúvidas que o presente ambiente de dinheiro fácil tenha sido aproveitado para relançar a economia. Quando a hora das necessidades chegar, o comboio do dinheiro fácil já terá partido. Temo que Portugal venha a ser apanhado em contra-pé quando os EUA decidirem travar as medidas de estímulo de um modo mais brusco. Por essa razão a Reserva Federal tem sido cautelosa no "abandono da dependência". Os mercados e as economias de todo o mundo vivem sob a sombrinha dessas medidas extraordinárias, inventadas para relançar a economia americana, mas que se fazem sentir a grande distância dos domínios do Uncle Sam. Os decisores monetários norte-americanos sabem que a coisa tem de ser feita devagarinho para não causar muita mossa, mas em última instância, o sistema financeiro global é um animal que não pode ser domesticado para mitigar os mais que prováveis efeitos colaterais. Por essa razão o que se passa na Turquia e na África do Sul interessa (e muito) aos decisores políticos locais. Podem bradar aos céus que isso é lá com eles, mas não é bem assim. O BCE que se cuide e tome as medidas cautelares adequadas, nomeadamente a implementação das suas próprias medidas de estímulo das economias da periferia, mas sem esquecer as do centro que se degradam a cada dia que passa.