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São precisamente temas de pasquim como a declaração suicida de Passos Coelho ou a flatulência de Sobral que determinarão o próximo incêndio em Portugal. O povo aprecia o circo, e dispensa a essência basilar de um sistema. Rir à conta da palermice e da mediocridade afasta o ser pensante dos grandes desígnios do país. Ser profundo e consequente custa. E, in spite of it all, não se chega a bom porto com festas de auto-comiseração, espectáculos narcisistas e verberações masturbatórias. Sentar-se à mesa como adultos e encarar a música desafinada não é para qualquer um. Ao validarem a ideia de absolvição dos pecados, numa congregação de "manifesta e inequívoca solidariedade", adiam o trabalho duro, sujo. São momentos de pico como este, de libertação orgásmica, de hibridismo transformador da "dor dos outros" em esperança para "todos", que eternizam a noção de ascensão e queda, fulgor e inconsequência. Por mais que estiquem os zeros do milhão, os mesmos não tapam a parte descoberta de um país inteiro versado nas artes hedonistas, nos prazeres. Foram os deleites que mataram as florestas. Foram as extravagâncias de uns que abandonaram o interior. Foram os cosmopolitas vibrantes que deitaram fogo à ruralidade em nome da sofisticação cintilante de uma festa de arromba. A silly season está oficialmente aberta.
Depois de já ter referido o post de José Pacheco Pereira, recomendo ainda a leitura deste artigo de João Cardoso Rosas, que aqui deixo na íntegra:
«Acompanhei com distanciamento a polémica sobre as declarações de Isabel Jonet, no mês passado, acerca da necessidade do empobrecimento em Portugal.
Afinal de contas, ela tem feito um trabalho admirável no Banco Alimentar contra a Fome e todos devíamos estar-lhe gratos por isso. Uma pessoa que faz um trabalho de natureza prática não tem de ter um pensamento sofisticado sobre a pobreza e a desigualdade. Não devemos esperar que Isabel Jonet, depois de um dia de trabalho no Banco Alimentar, passe os serões a ler John Rawls ou Amartya Sen. Por isso, as críticas que então lhe foram dirigidas pareceram-me claramente excessivas e mesmo deslocadas. Agora, mudei de opinião.
Jonet dá esta semana mais uma entrevista, desta feita ao jornal i, onde declara: "Sou mais adepta da caridade do que da solidariedade social". De forma cuidadosa, admite que necessitamos tanto de uma coisa como da outra e até considera errada a diminuição dez algumas prestações sociais. Na verdade, se Jonet tivesse dito que precisamos tanto de caridade como de solidariedade, eu concordaria. Mas ela disse algo subtilmente diferente, ou seja, que a caridade é preferível à solidariedade. Isto é, que a benevolência individual trata melhor os problemas da pobreza e da injustiça do que a solidariedade socialmente organizada através do Estado.
Estas declarações - que Jonet dirá sempre que foram mal interpretadas, como se quem fala publicamente tivesse o monopólio da interpretação daquilo que diz - recordaram-me aquilo que se contava aqui há uns anos sobre as aulas do filósofo libertarista (ou neoliberal) Robert Nozick. Este escreveu uma famosa obra, intitulada "Anarquia, Estado e Utopia", na qual atacava a ideia de justiça social considerando que, na verdade, qualquer esquema solidário ou distributivo implicava interferir na propriedade e liberdade dos mais ricos, o que significava tratá-los instrumentalmente e isso era indefensável de um ponto de vista moral. Pois bem, enquanto ensinava estas teorias, Nozick faria correr entre os estudantes uma caixa-mealheiro onde estava escrito "Contribuições para a pobreza em África". A ideia era clara: a caridade substituía com vantagem a solidariedade.
Quando Isabel Jonet vem agora dizer que a caridade é preferível não podemos desligar-nos de um contexto político no qual o Governo pretende impor um corte devastador no Estado social, em especial nas prestações sociais. Ou seja, os discursos de Jonet e do Governo funcionam em tandem. Eles fazem cada um por si aquilo que Nozick fazia em simultâneo na sua sala de aula. Ao dizer que a caridade é preferível, Jonet está também a dizer, de forma sub-reptícia, que o Governo tem razão em cortar na solidariedade.»
Leitura complementar: O mito do viver acima das possibilidades; Marx a rir; Duas petições; Pobreza intelectual; Vamos brincar à caridadezinha; A indecorosa leveza da ideologia da caridadezinha; Raiva; Ainda Isabel Jonet.
Pacheco Pereira está cheio de razão sobre as intervenções de Isabel Jonet. Se muitos conseguissem sair da redutora e primária posição de defender as patetices proferidas por Isabel Jonet, que têm uma carga ideológica e um pensamento sobre a sociedade - ainda que rudimentar - evidentes, e com que estou em absoluta discordância, apenas porque a sua obra é meritória, talvez pudessem então vislumbrar a "bigger picture". Mas para isso era preciso que também deixassem de acreditar no mito do "viver acima das possibilidades", muito em voga para os lados do Governo. Ler este artigo talvez ajude.
Leitura complementar: O mito do viver acima das possibilidades; Marx a rir; Duas petições; Pobreza intelectual; Vamos brincar à caridadezinha; A indecorosa leveza da ideologia da caridadezinha; Raiva.
Um apelo da Ana lembrou-me o afilhado moçambicano da minha professora primária.
Logo na Primeira Classe, a Dona Maria disse-nos que era madrinha de um menino de Moçambique, e que esperava de todas nós a ajuda possível, porque no fundo ele era afilhado de toda a Classe. . Havia no armário uma caixa de cartão, onde colocávamos a moeda de que cada uma podia dispor, consoante as possibilidades, para que, no fim do mês, uma senhora das Missões, que ia à Escola, enviasse o dinheiro amealhado, destinado a ajudar no bem-estar e educação do "nosso" afilhado.