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Somerset Maugham – Servidão Humana

por Samuel de Paiva Pires, em 10.12.11

(Há uma primeira vez para tudo, até para me armar em crítico literário, pelo que aqui fica este artigo publicado no n.º 4 do Lado Direito, jornal da Juventude Popular de Lisboa)

 

 

Romance intemporal de um dos mais célebres escritores do século XX, Servidão Humana é um registo autobiográfico que relata a história de Philip Carey, alter ego de Maugham, focado particularmente na sua entrada na idade adulta e nos dilemas pessoais por que todos somos atingidos nessa fase da vida em que a nossa personalidade fica mais definitivamente formada.

          

Sem uma escrita floreada ou com demasiados recursos estilísticos, Maugham leva-nos directamente ao âmago da sua existência e aos dilemas que se consubstanciam na eterna necessidade de liberdade, virtude a que qualquer ser humano aspira. A subtil narração principia com o duro processo que leva a que Philip fique órfão com apenas 9 anos de idade, indo posteriormente viver com os tios na província. Após alguns anos, passados essencialmente na biblioteca do tio, vigário de Blackstable, e no colégio onde os colegas gozam com o seu pé deficiente, algo que o marcará para sempre, Philip lança-se ao mundo começando por ir estudar para Heidelberg durante uma temporada, passando por Paris, onde tenta singrar como pintor, e regressando a Londres, onde trabalha em diversos ofícios e estuda medicina.  

 

Levando-nos pelo seu próprio percurso intelectual, de onde há a salientar a aprendizagem dos clássicos e as reflexões sobre religião e filosofia, Maugham presenteia-nos com uma das mais poderosas histórias sobre o amor, não no sentido quase banal a que muita da literatura e cinematografia contemporâneas habituaram as sociedades modernas, mas num plano porventura mais verdadeiro, mais cru e mais doloroso, em que Philip se vê perdidamente apaixonado por Mildred, uma mulher que se pode dizer ser quase desprezível e desinteressante, da qual não se consegue libertar e pela qual contraria o seu eu mais racional incontáveis vezes. No fundo, ficamos perante o dilema que o filósofo Isaiah Berlin enunciou ao afirmar que existe em cada indivíduo uma dicotomia interior entre o seu carácter racional e os seus impulsos irracionais, ou seja, os seus desejos mais primários, que levam à busca do prazer imediato, pelo que ficará sempre a questão: conseguirá um ser humano alcançar um nível de consciência tal que lhe permita ser dono das suas próprias paixões, e não escravo delas?

 

A dor de Philip é também aquela por que muitos passamos. A todo o momento queremos que ele se liberte, mas compreendemos exactamente o porquê de agir como age. Acaba até por haver uma certa universalidade no comportamento humano, uma idiossincrasia masculina, dado que a história de Philip nos relembra as palavras que Ramalho Ortigão utilizou para caracterizar o amor na sociedade portuguesa: «O impulso amoroso no coração lusitano, em vez de impelir a fantasia a voejar por instantes no país do azul, excita apenas o temperamento a marrar a fundo, espesso e resfolegante, nas trevas. (…) Na evolução patológica dos sentimentos o amor é o antraz maligno da nossa raça. Uma vez apaixonado, o português é um enfermo, é quase um irresponsável. Perde a faculdade de estar alegre e de estar atento. Torna-se estúpido e sombrio.»

 

Maugham não desilude e, apesar de ter confessado que a escrita de Servidão Humana serviu para se libertar de vários demónios pessoais, deixa-nos com um desfecho agradável. No fim, fica aquele vazio de sabermos que acabámos de ler um grande livro com uma intemporal reflexão sobre o comportamento humano. Relê-lo será sempre uma boa ideia.

publicado às 19:14

Idiossincrasias

por Samuel de Paiva Pires, em 18.03.11

 

(imagem daqui)

 

Somerset Maugham, Servidão Humana:

 

«Depois do desentendimento houve uma rápida reconciliação mas os poucos dias que ainda faltavam foram um enfado para Philip. Ele só queria falar do futuro e o futuro levava Miss Wilkinson invariavelmente às lágrimas. No início, o seu choro incomodava-o e, sentindo-se uma besta, redobrava as declarações de eterna paixão; mas agora irritava-o. Estaria tudo muito bem se ela fosse uma jovem, mas era ridículo uma mulher adulta chorar tanto. Ela insistia em lembrar-lhe que tinha uma dívida de gratidão para com ela tão grande que nunca a poderia saldar. Ele estava disposto a concordar, já que ela fazia questão, mas não percebia por que razão deveria ele estar mais grato a ela do que ela a ele. Era esperado que ele mostrasse um sentido de obrigação em moldes que o aborreciam bastante. Estava muito habituado à solidão e às vezes sentia essa necessidade. Mas Miss Wilkinson achava que era uma falta de consideração ele não estar sempre à sua disposição. As irmãs O'Connor convidaram ambos para um chá e Philip gostaria muito de ter ido, mas Miss Wilkinson disse que já só tinham cinco dias juntos e queria-o só para ela. Era lisonjeador mas uma chatice. Miss Wilkinson contou-lhe histórias sobre a extraordinária delicadeza dos homens franceses quando mantinham relações semelhantes à deles. Elogiou-lhes a cortesia, o gosto pela abnegação, a perfeita diplomacia. Miss Wilkinson parecia muito exigente. 

 

Philip ficou a ouvi-la enumerar as qualidades que um amante perfeito deve possuir e não pôde deixar de sentir uma certa satisfação por ela viver em Berlim. 

 

- Vais escrever-me, não vais? Escreve-me todos os dias. Quero saber tudo o que fazes. Não me escondas nada.

- Vou estar imensamente ocupado - respondeu. - Escreverei sempre que possível. 

 

Ela pôs-lhe os braços apaixonadamente à volta do pescoço. Por vezes ficava embaraçado com estas demonstrações de afecto. Teria preferido que ela fosse mais comedida. Chocava-o um pouco que ela lhe sugerisse normas de comportamento. Não correspondia de todo aos pressupostos que ele possuía sobre a modéstia do temperamento feminino.

 

Finalmente veio o dia da partida de Miss Wilkinson. Ela desceu para o pequeno-almoço com um ar pálido e cabisbaixo trazendo um funcional vestido de viagem de xadrez preto e branco. Dava-lhe um aspecto de preceptora competente. Philip também estava silencioso, porque não sabia muito bem o que dizer nestas circunstâncias. Tinha um medo terrível de dizer alguma coisa inconveniente e de Miss Wilkinson se ir abaixo e fazer uma cena à frente do tio. Tinham feito as últimas despedidas no jardim na noite anterior e Philip sentia-se aliviada por já não haver mais oportunidades de ficarem sozinhos. Ele permaneceu na sala de jantar depois do pequeno-almoço para o caso de Miss Wilkinson poder insistir em beijá-lo nas escadas. Não queria que Mary Ann, agora uma mulher perto da meia-idade e de língua afiada, os apanhasse numa posição comprometedora. Mary Ann não gostava de Miss Wilkinson e chamava-lhe bruxa velha. A tia Louisa não se sentia bem e não podia ir à estação, mas o vigário e Philip acompanharam-na. Quando o comboio estava prestes a partir ela inclinou-se para fora e beijou Mr. Carey.

 

- Tenho de lhe dar um beijo também, Philip - disse ela.

- Está bem - disse ele corando.

 

Subiu um degrau e ela deu-lhe um beijo rápido. O comboio começou a andar e Miss Wilkinson deixou-se cair num canto da carruagem a chorar inconsolável. Philip fez o caminho de regresso ao vicariato com uma clara sensação de alívio.»

publicado às 21:20






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