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(Há uma primeira vez para tudo, até para me armar em crítico literário, pelo que aqui fica este artigo publicado no n.º 4 do Lado Direito, jornal da Juventude Popular de Lisboa)
Romance intemporal de um dos mais célebres escritores do século XX, Servidão Humana é um registo autobiográfico que relata a história de Philip Carey, alter ego de Maugham, focado particularmente na sua entrada na idade adulta e nos dilemas pessoais por que todos somos atingidos nessa fase da vida em que a nossa personalidade fica mais definitivamente formada.
Sem uma escrita floreada ou com demasiados recursos estilísticos, Maugham leva-nos directamente ao âmago da sua existência e aos dilemas que se consubstanciam na eterna necessidade de liberdade, virtude a que qualquer ser humano aspira. A subtil narração principia com o duro processo que leva a que Philip fique órfão com apenas 9 anos de idade, indo posteriormente viver com os tios na província. Após alguns anos, passados essencialmente na biblioteca do tio, vigário de Blackstable, e no colégio onde os colegas gozam com o seu pé deficiente, algo que o marcará para sempre, Philip lança-se ao mundo começando por ir estudar para Heidelberg durante uma temporada, passando por Paris, onde tenta singrar como pintor, e regressando a Londres, onde trabalha em diversos ofícios e estuda medicina.
Levando-nos pelo seu próprio percurso intelectual, de onde há a salientar a aprendizagem dos clássicos e as reflexões sobre religião e filosofia, Maugham presenteia-nos com uma das mais poderosas histórias sobre o amor, não no sentido quase banal a que muita da literatura e cinematografia contemporâneas habituaram as sociedades modernas, mas num plano porventura mais verdadeiro, mais cru e mais doloroso, em que Philip se vê perdidamente apaixonado por Mildred, uma mulher que se pode dizer ser quase desprezível e desinteressante, da qual não se consegue libertar e pela qual contraria o seu eu mais racional incontáveis vezes. No fundo, ficamos perante o dilema que o filósofo Isaiah Berlin enunciou ao afirmar que existe em cada indivíduo uma dicotomia interior entre o seu carácter racional e os seus impulsos irracionais, ou seja, os seus desejos mais primários, que levam à busca do prazer imediato, pelo que ficará sempre a questão: conseguirá um ser humano alcançar um nível de consciência tal que lhe permita ser dono das suas próprias paixões, e não escravo delas?
A dor de Philip é também aquela por que muitos passamos. A todo o momento queremos que ele se liberte, mas compreendemos exactamente o porquê de agir como age. Acaba até por haver uma certa universalidade no comportamento humano, uma idiossincrasia masculina, dado que a história de Philip nos relembra as palavras que Ramalho Ortigão utilizou para caracterizar o amor na sociedade portuguesa: «O impulso amoroso no coração lusitano, em vez de impelir a fantasia a voejar por instantes no país do azul, excita apenas o temperamento a marrar a fundo, espesso e resfolegante, nas trevas. (…) Na evolução patológica dos sentimentos o amor é o antraz maligno da nossa raça. Uma vez apaixonado, o português é um enfermo, é quase um irresponsável. Perde a faculdade de estar alegre e de estar atento. Torna-se estúpido e sombrio.»
Maugham não desilude e, apesar de ter confessado que a escrita de Servidão Humana serviu para se libertar de vários demónios pessoais, deixa-nos com um desfecho agradável. No fim, fica aquele vazio de sabermos que acabámos de ler um grande livro com uma intemporal reflexão sobre o comportamento humano. Relê-lo será sempre uma boa ideia.
(imagem daqui)
Somerset Maugham, Servidão Humana:
«Depois do desentendimento houve uma rápida reconciliação mas os poucos dias que ainda faltavam foram um enfado para Philip. Ele só queria falar do futuro e o futuro levava Miss Wilkinson invariavelmente às lágrimas. No início, o seu choro incomodava-o e, sentindo-se uma besta, redobrava as declarações de eterna paixão; mas agora irritava-o. Estaria tudo muito bem se ela fosse uma jovem, mas era ridículo uma mulher adulta chorar tanto. Ela insistia em lembrar-lhe que tinha uma dívida de gratidão para com ela tão grande que nunca a poderia saldar. Ele estava disposto a concordar, já que ela fazia questão, mas não percebia por que razão deveria ele estar mais grato a ela do que ela a ele. Era esperado que ele mostrasse um sentido de obrigação em moldes que o aborreciam bastante. Estava muito habituado à solidão e às vezes sentia essa necessidade. Mas Miss Wilkinson achava que era uma falta de consideração ele não estar sempre à sua disposição. As irmãs O'Connor convidaram ambos para um chá e Philip gostaria muito de ter ido, mas Miss Wilkinson disse que já só tinham cinco dias juntos e queria-o só para ela. Era lisonjeador mas uma chatice. Miss Wilkinson contou-lhe histórias sobre a extraordinária delicadeza dos homens franceses quando mantinham relações semelhantes à deles. Elogiou-lhes a cortesia, o gosto pela abnegação, a perfeita diplomacia. Miss Wilkinson parecia muito exigente.
Philip ficou a ouvi-la enumerar as qualidades que um amante perfeito deve possuir e não pôde deixar de sentir uma certa satisfação por ela viver em Berlim.
- Vais escrever-me, não vais? Escreve-me todos os dias. Quero saber tudo o que fazes. Não me escondas nada.
- Vou estar imensamente ocupado - respondeu. - Escreverei sempre que possível.
Ela pôs-lhe os braços apaixonadamente à volta do pescoço. Por vezes ficava embaraçado com estas demonstrações de afecto. Teria preferido que ela fosse mais comedida. Chocava-o um pouco que ela lhe sugerisse normas de comportamento. Não correspondia de todo aos pressupostos que ele possuía sobre a modéstia do temperamento feminino.
Finalmente veio o dia da partida de Miss Wilkinson. Ela desceu para o pequeno-almoço com um ar pálido e cabisbaixo trazendo um funcional vestido de viagem de xadrez preto e branco. Dava-lhe um aspecto de preceptora competente. Philip também estava silencioso, porque não sabia muito bem o que dizer nestas circunstâncias. Tinha um medo terrível de dizer alguma coisa inconveniente e de Miss Wilkinson se ir abaixo e fazer uma cena à frente do tio. Tinham feito as últimas despedidas no jardim na noite anterior e Philip sentia-se aliviada por já não haver mais oportunidades de ficarem sozinhos. Ele permaneceu na sala de jantar depois do pequeno-almoço para o caso de Miss Wilkinson poder insistir em beijá-lo nas escadas. Não queria que Mary Ann, agora uma mulher perto da meia-idade e de língua afiada, os apanhasse numa posição comprometedora. Mary Ann não gostava de Miss Wilkinson e chamava-lhe bruxa velha. A tia Louisa não se sentia bem e não podia ir à estação, mas o vigário e Philip acompanharam-na. Quando o comboio estava prestes a partir ela inclinou-se para fora e beijou Mr. Carey.
- Tenho de lhe dar um beijo também, Philip - disse ela.
- Está bem - disse ele corando.
Subiu um degrau e ela deu-lhe um beijo rápido. O comboio começou a andar e Miss Wilkinson deixou-se cair num canto da carruagem a chorar inconsolável. Philip fez o caminho de regresso ao vicariato com uma clara sensação de alívio.»