Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]
Como não utente do serviço de taxis, tinha decidido nem sequer comentar a controvérsia que opõe os taxistas aos seus colegas da "Iubâr" ou da "Québifai". Rarissimamente mando parar um taxi, logo este é um tema que não me interessa minimamente. Contudo, no telejornal da uma, assisti às expectáveis e há muito previstas cenas de violência que não se limitou à farta verbosidade que o luso-calão encerra num dos infindáveis tomos acumulados ao longo de quase um milénio de história pátria.
Recordo apenas o primeiro contacto que tive com tal sector e por mais miraculoso que a muitos possa parecer, aqui deixo a data desse encontro imediato: a escura e bastante tépida noite de 7 de Setembro de 1974.
Chegados a Lisboa devido à bastante aturada decisão paterna de antecipadamente auto-limparmos familiar e etnicamente Lourenço Marques, fomos viver para a aproximadamente meia dúzia de metros quadrados propiciados pela roulotte do primo Joaquim Dantas. Em Monsanto estávamos relativamente seguros numa Lisboa em pueril polvorosa.
Nos primeiros dias aproveitámos para visitar a parte da cidade histórica, hoje muito mutilada devido à febre do obra a obra que há décadas tomou de assalto as mentes de sucessivas vereações camarárias. Após um dia sem grande historial a registar e como àquelas horas nocturnas o machimbombo 43 já não funcionava, o meu pai decidiu abrir os cordões à bolsa e pcht! Taxi! Taxi!
- É para o Parque de Campismo de Monsanto...
E lá fomos sentados no banco de trás, acompanhados pela nossa mãe. Íamos conversando e ainda nada habituados aos até então desconhecidos termos como foleiro ou reinar - "rénar", no dizer geral -, pontilhámos a conversa com os ya, maningues, nice, tombazanas e outras palavras que tínhamos aprendido nas ruas e casas da nossa volatilizada cidade natal. Provavelmente o chauffeur moita-carrasco bigodudo e de boné estranhava, mas nada dizia, até que o rádio iniciou o debitar das notícias que precisamente naquele 7 de Setembro traziam ao conhecimento da então Metrópole, acontecimentos num território bem conhecido e por nós já interiorizado como para sempre distante.
...graves acontecimentos (...) colonos em fúria (...) fascistas (...) Rádio Clube de Moçambique (...) assalto (...) forças reaccionárias (...) colonialistas (...) conluio com os sul-africanos (...) Lourenço Marques (...) MFA...
O meu pai gentilmente pediu ao motorista:
- Desculpe-me, importa-se de aumentar o som do rádio?
- Eh pá, ó camarada, afinal d'adonde bócêzes são, pá?
- Somos de LM, chegámos há uma semana e vivemos provisoriamente em Monsanto.
- F-se!, Car...! Pqp!, no meu taxi uma família de fachos dum car...?! Os pretos deviam ter-vos cortado às postas seus fdp dum car...!
Parou o radiofonizado calhambeque Mercedes "marreco" num profundo e doloroso gemido de travões gastos.
- Rua já, seus cabr... antes que eu chame os meus camaradas e vos f... a todos aqui mesmo nesse mato, seus fdp! Vão prá vossa terra, vão para a c... da vossa mãe!
O meu pai mandou-nos sair e voltando-se para o revolucionário de carrascão e caracoletas, perguntou-lhe com um sorriso:
- E como tenciona chamar os tais camaradas?
E lá partiu ele, decerto furibundo e bufando, deixando-nos às escuras em pleno monte de Monsanto por onde deambulámos durante uma boa hora aos círculos, procurando a entrada de um parque de campismo que o meu pai julgava próximo. Na verdade estava e felizmente encontrámo-lo sem grandes delongas. Este episódio serviu-nos de aviso para o que aí viria.
Já distante mas jamais esquecida esta tempestade de outros tempos, foi mais ou menos este o discorrer do discurso escutado que tenho como nota de rodapé da estória da minha família. Decerto não fomos os únicos, pois apostaria que qualquer um dos leitores terá a sua. Será ela a propósito de pretos? De ciganos? Ou será de estrangeiros Made in U.E. que invadem e roubam tudo o que é nosso?
A política e os mercados têm tanto em comum. Mas uma máxima em particular aplica-se sem reservas. Por mais que queiram insistir no contrário, a verdade é que não existem lugares cativos - a não ser que se trate de uma ditadura. O governo de António Costa e os taxistas partilham a mesma cultura da intangibilidade. Julgam que existe uma estância que não pode ser tocada, um património ideológico sagrado, uma faixa de rodagem inviolável. Contudo, essas intenções estão sujeitas às considerações e às preferências dos cidadãos. No mercado quem concede os selos de aprovação são os consumidores, e na política quem diz que sim são os destinatários finais de decisões governativas. O ponto de equilíbrio resulta da fricção entre o deve e o haver, a procura e a oferta, a qualidade ou a ausência da mesma. Amanhã o protesto dos taxistas irá subtrair receitas à economia nacional. Milhares de cidadãos que não fazem parte desta guerra sofrerão as consequências de um pequeno sector da textura produtiva nacional. O que irá suceder quando a UBER for substituída por veículos sem condutor? Será que a UBER tornar-se-á num arruaceiro? Será que ainda não perceberam que o cliente pode não ter sempre razão, mas que neste caso exprime inequivocamente que deseja algo diferente - mais qualidade? Os taxistas devem continuar a existir, mas agora a fasquia está mais elevada. E amanhã não sei se ganharão mais adeptos. Parece que será mais um tiro que sai pelo escape. Estou a falar do PEC, naturalmente.
O governo de António Costa foi encostado ao canto por duas centenas de taxistas. Os socialistas acabam de minar mais um dos pilares da Democracia - o conceito de ordem pública. Ao ceder à chantagem da força bruta de uma classe profissional, Costa abre uma brecha grave na dimensão securitária de um país. Nunca um governo deve ceder a pressões desta natureza. Amanhã teremos os produtores de leite a derramar o seu protesto numa outra estação de serviço da economia nacional. Mas entendo o lirismo revolucionário do governo. A Esquerda, que é apologista da intervenção anárquica, nunca poderia condenar a acção daqueles que se inspiram nos seus métodos. Os portugueses ficam a saber como se marca uma reunião com o governo. A forma civilizada da tal concertação social é algo que pelos vistos não existe. Em vez de sancionar os prevaricadores, António Costa entrega um prémio àqueles que certamente perturbaram a vida de tantos outros que também enfrentam concorrência desleal ou nem por isso. É caso para começarem a questionar a capacidade deste executivo para manter a ordem na via pública. Vergonhoso.
António Guterres não tem conta de Facebook. Se o Alto-Comissário para os Refugiados das Nações Unidas (UNHCR) tivesse perfil e mural percebia logo que o homem-comum, o cidadão-tipo de Portugal, não está nada contente com a possibilidade da vinda de contingentes de refugiados. Bastar-lhe-ia falar com um taxista para chegar a essa conclusão: "eles que fiquem lá na terra deles". Se falasse com um condutor-uber, talvez o caso mudasse de figura, mas não é isso o mais importante. O que convém sublinhar é o alinhamento de Guterres com o camarada António Costa, que referiu que o problema demográfico de Portugal seria resolvido com a chegada de migrantes. Até pode ter alguma razão, mas o que me chateia mesmo é Guterres servir-se do seu cargo para dar um empurrão à campanha de Costa. As suas palavras, subtilmente oferecidas, enaltecendo a sociedade civil de Portugal, passam por outra portagem. Inscrevem-se na fórmula oportunista de Costa, que antes da crise de refugiados tomar estas proporções, nunca havia tido uma ideia pan-europeia, uma sugestão que fosse sobre o futuro da relação de Portugal com um continente em profunda alteração. Um candidato a primeiro-ministro deve ter capacidade para pensar além dos ganhos e proveitos da mão-de-obra barata que as empresas de construção civil anseiam por ter. Em suma, os refugiados, que não são tidos nem achados, já servem de arma de arremesso na campanha dos socialistas. Eles nem sonham com a utilização abusiva da sua condição e não irão eleger Costa ou quem quer que seja.