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Durante os últimos quatro anos, os partidários portugueses de Trump e quejandos líderes e movimentos populistas não só ignoraram como se regozijaram com os inúmeros ataques do ainda Presidente dos EUA aos fundamentos da democracia liberal e às mais elementares regras de decência e civilidade. Aprenderam com Trump uma táctica discursiva de contornos bastante simples, assente em duas fases, que temos observado nos últimos dias: acusam os adversários daquilo que, na verdade, são as práticas dos próprios acusadores, e quando confrontados recorrem invariavelmente à vitimização. Isto em registos constantemente marcados pela grosseria e ofensas gratuitas ao mesmo tempo que se arvoram em adeptos da elevação no debate. São constantes os ataques vis protagonizados por Trump, as acusações de que os adversários fizeram X ou Y que, na realidade, é o que o próprio faz, e a sempre previsível vitimização perante o confronto. A estratégia de Trump para as eleições é, aliás, elucidativa quanto baste a este respeito. Entre os seus aprendizes, um exemplo particularmente ilustrativo foram as críticas a Joe Biden por ter chamado “clown” a Trump no primeiro debate presidencial, tecidas por quem ignorou olimpicamente o facto de ter sido Trump a levar o debate para a lama. Mais uma vez, escamotearam a conduta miserável do seu querido líder e alguns, sem terem visto o debate, concentraram os seus ataques sobre esse momento, não tendo sequer a noção de que Biden revelou capacidade de contenção numa situação em que muitos nivelariam a sua postura pela de Trump ou abandonariam o debate.
Entretanto, por cá, à direita, a divisão entre democratas liberais e populistas tem-se tornado cada vez mais visível, sendo célebres, dos trumpistas nativos, várias ofensas, desde as mais patéticas (“a direita cobarde”, “os moderados cobardes”, “a direita fofinha”, “a direita Haddad”) às mais directas e em registo taberneiro. Recorrem com uma inusitada frequência a este estilo pela simples razão de que atrás de um computador, e no tempo das redes sociais, a propensão para a agressividade é particularmente acentuada. Ao vivo, perante aqueles que apelidam de cobardes, não se atrevem, como já pude observar várias vezes, a adoptar um vislumbre da retórica ofensiva a que recorrem nas redes, até porque a frontalidade e a coragem moral e física de muitos é inversamente proporcional à que demonstram no mundo virtual, da mesma forma que a sua noção de civilidade também é inversamente proporcional à que fica patente na internet - felizmente! Talvez mais interessante que a fase das ofensas, é a fase da vitimização. Revela a mesma postura moral do bully no recreio da escola que, quando confrontado, choraminga e vai fazer queixas aos professores e aos pais. São os Eric Cartman da direita portuguesa.
Mas esta semana trouxe-nos uma novidade nas práticas discursivas. Às acusações, ofensas e vitimização vieram acrescentar a cereja no topo do bolo: o gongorismo proclamatório em declarações sobre o fim da civilização, do debate público elevado e, no limite, da humanidade como a conhecemos. Descartados os óbvios exageros de quem se leva demasiado a sério, há que mostrar alguma compreensão. Estão desnorteados com a eventual queda do querido líder e com o que esta significaria para o futuro dos movimentos nacional-populistas. Agora que os EUA poderão entrar numa fase de regeneração, por cá a direita radical ainda está na fase de crescimento. Quando a direita radical lusa atingir o auge, em muitos outros países já os populistas estarão no espelho retrovisor. O populismo é a antítese da democracia liberal. Em vez de harmonizar contrários, alimenta-se da tribalização e da polarização. Mas quando chegarmos à fase de síntese, isto é, quando algumas críticas dos populistas tiverem sido absorvidas e respondidas pelo mainstream que descarta as soluções anti-liberais, os "moderados-fofinhos-cobardes" cá estarão, na sua infinita paciência, tolerância e, em muitos casos, caridade cristã, para acolher os que os têm ofendido.
Estou a mudar. E não sou o único. Não deixei de acreditar. Mas as minhas convicções também não se encontram em territórios perfeitamente delineados. Dentro de dias farei anos, e se me confinasse a uma matriz definida estaria arrumado, seria um velho - mais velho do que o mero ano que irei adicionar à minha existência. Durante anos a fio fomos arremessados sem dó nem piedade de um sistema de valores políticos para o seguinte, de uma promessa grandiosa para um juramento ainda maior, e sem pudor, fomos aceitando essa modalidade de fé, essa religião política. Encontramo-nos agora num cruzamento, no confronto entre os medos, as expectativas, as convenções e preconceitos que se sedimentaram no nosso espírito e toldaram as nossas consciências. Somos adeptos de uma modalidade de descrença em particular. Por força da dependência crónica do juízo dos outros reduzimo-nos a unidades de conformidade, de passividade perante uma narrativa agora corroborada por eventos que alguns designarão de surpreendentes. No entanto, não existe nada de excêntrico na eleição de Trump. Os americanos esbanjaram tanto tempo para encarar a sua própria decepção. Não souberam repartir a tarefa de um modo gradual, faseado. Atingiram a velocidade de cruzeiro de uma máquina desgovernada, contrafeita. Pactuaram com os termos de identidade e residência em Washington dos demais actores da mesma epopeia de ascensão e apenas ascensão. Agora que a encomenda chega, o espanto parece ser a expressão facial mais corrente. Mas fomos nós que produzimos o estado da Nação, e seremos nós que iremos escrever os próximos capítulos europeus. Os discursos e a letra dos mesmos darão lugar a algo distinto, com grau de parentesco ou não. Somos simultaneamente responsáveis e testemunhas de um processo irreversível. Mas somos letárgicos, lentos. Sabemos sempre tarde demais como poderia ter sido, como desejaríamos que tivesse sido. A política assente na antecipação é uma natureza morta. Estamos sempre em dívida e estamos quase sempre atrasados. E como deixamos que outros tomem a dianteira, queixamo-nos de um modo injusto. Fomos nós que nos paralisamos em convenções e ideologias consideradas estanques e vitalícias.