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A narrativa política europeia encontra no seu cerne, desde há décadas, o propalado Estado Social. As raízes deste datam de um dos grandes teóricos políticos da era vitoriana, Jeremy Bentham, pai do utilitarismo. Embora este fosse um defensor do laissez-faire e de um estado pouco intervencionista, o seu princípio utilitarista da “felicidade do maior número” inspirou muitos dos políticos britânicos do século XIX, contribuindo directamente para a justificação de uma crescente intervenção do estado na sociedade, acompanhada por uma expansão das suas competências administrativas.
No centro da Europa, Otto von Bismarck, feroz opositor do socialismo, aplicou programas de apoio social na Prússia e na Saxónia, e após a unificação alemã (em 1871) criou os alicerces do moderno conceito de Estado Social ao introduzir um sistema de segurança social com pensões de invalidez, doença e reforma e acesso a cuidados médicos providenciados pelo estado. O Chanceler alemão pretendia garantir a coesão social e impedir que eventuais descontentes pudessem ser ideologicamente tolhidos pelo socialismo de cariz mais radical, mas o mundo não se livrou de ver aplicados regimes políticos assentes no socialismo – fascismo, nazismo e comunismo – aquilo a que Friedrich A. Hayek chamou de “hot socialism”, por oposição ao “cold socialism” do Estado Social.
Após a II Guerra Mundial e no rescaldo da Grande Depressão, o Relatório Beveridge de 1942 propôs um amplo modelo de Estado Social que se tornou politicamente consensual, sendo perspectivado como uma terceira via entre o comunismo e o capitalismo, inspirando, portanto, a social-democracia. O princípio chave deste modelo é o conceito de justiça social que permitiu, por um lado, novas reivindicações por parte dos cidadãos em relação ao governo, mas por outro, permitiu também a este alargar discricionariamente os seus poderes em nome da justiça social.
Que o conceito de justiça social seja desprovido de sentido e se fundamente em pouco mais que a redistribuição de rendimentos para atingir propósitos políticos, é algo que não impediu que este se tornasse o mais eficaz argumento na discussão política contemporânea, servindo os propósitos de justificação de qualquer medida e rapidamente enfraquecendo a eventual oposição a esta. Acontece que, conforme Hayek assinala, ao contrário do socialismo original, o conceito de Estado Social não tem um significado preciso, e prova disto mesmo são os modelos diversificados aplicados em vários estados – assim como o debate de surdos ferido de morte pela demagogia, para o qual, em Portugal, o Partido Socialista liderado por José Sócrates contribuiu de forma determinante.
Certo é que, também de acordo com Hayek, nas sociedades industriais contemporâneas, não há razão, dados os níveis de riqueza alcançados, para não garantir um mínimo de segurança económica a todos os cidadãos, sem que tal coloque em causa a liberdade individual, até porque ao estado compete assegurar a manutenção da regras gerais de conduta e funcionamento da ordem alargada da sociedade, deixando aos indivíduos uma larga esfera de liberdade individual, mas também providenciar bens e serviços que o mercado não produz ou não pode produzir adequadamente. O problema surge quando o estado não se confina a si próprio e, legitimando e disfarçando as suas intenções sob o manto da justiça social, acaba por utilizar os seus poderes coercivos (por exemplo, a capacidade de cobrar impostos), para atingir propósitos políticos não consensuais na sociedade, reclamando ainda direitos sobre determinadas áreas da vida desta, e criando uma miríade de instituições que actuem nestas áreas. Este alargar das competências do governo fundado na distribuição de recursos e rendimentos, para além de distorcer o funcionamento da economia de mercado, levou ao enorme crescimento de um aparelho para-governamental que consiste em associações comerciais, sindicatos e organizações profissionais que tentam captar favores governamentais em troca do seu apoio político.
Foi desta forma que durante a segunda metade do século XX assistimos a um aumento exponencial de clientelas políticas e dependentes do estado e à captura deste por grupos de interesses organizados, degenerando o modelo do Estado Social em algo que vai muito para lá dos seus alegados propósitos de bem-estar social (saúde, educação, segurança social). Mais grave ainda, os defensores do intervencionismo estatal – sejam comunistas, socialistas ou social-democratas – não compreendem que foi precisamente o Estado Social que acabou por quebrar muitos dos vínculos tradicionais entre os indivíduos, tornando-os mais isolados e mais egoístas (num sentido pejorativo), e deixando-os à mercê de máquinas burocráticas que assumem crescentemente características de organizações ou sociedades de pendor totalitário.
Se queremos manter os propósitos do Estado Social, este necessita de uma refundação urgente que o resgate dos seus efeitos verdadeiramente anti-sociais e lhe dê sustentabilidade financeira. Não é financeira nem moralmente viável continuar a aumentar impostos para sustentar um modelo social degenerado. E o facto de, em Portugal, termos levado o endividamento externo (e toda a dívida estatal significa impostos futuros) a níveis que estão muito para lá do aceitável é mais que suficiente para nos fazer pensar nisto, porquanto está indelevelmente colocado em causa o princípio da solidariedade inter-geracional. Chegamos ao actual estado de coisas com a nossa liberdade cada vez mais reduzida, obrigados à submissão para que nos seja possível sobreviver, enquanto a União Europeia vai navegando à vista nesta crise das dívidas soberanas que arrisca fragmentar ou aprofundar o processo de integração europeia.
Entretanto, considerando o acordo com a Troika FMI/BCE/CE, temos uma apertada margem temporal para operar uma verdadeira reforma estrutural que diminua o peso do estado na economia e na sociedade, o que passa por extinguir milhares de organismos, institutos, fundações e privatizar ou também fechar muitas das empresas do sector empresarial estatal. Nesta matéria, o Orçamento Geral do Estado para 2012 será a prova de fogo do actual governo PSD-CDS. Simultaneamente, precisamos também de pensar o nosso lugar no Mundo. O vector europeísta da nossa política externa está cada vez mais esgotado e esta, que sempre serviu para que procurássemos no exterior recursos para nos desenvolvermos internamente, precisa de se virar para onde estes existem e onde, ainda por cima, os seus detentores nos são histórica e culturalmente próximos. O Atlântico sempre foi o principal vector desta, até 1974. Talvez esteja na altura de recuperar esta orientação para que, como escreveu Fernando Pessoa, possamos cumprir Portugal.
(Artigo originalmente publicado no primeiro número do Lado Direito, jornal da Concelhia de Lisboa da JP, conforme aqui referido.)
Caro Orlando,
1 - Tem razão em relação à minha confusão, defeito da minha formação de base e do viés anglo-saxónico.
2 - Está errado quanto ao utilitarismo de Hayek. Já lhe dei várias pistas e indicações bibliográficas. Eu é que não vou escrever uma introdução geral e redonda sobre o assunto só para si, só porque o Orlando acha que há um consenso alargado sobre este assunto. Não há. Instrua-se a este respeito se quiser. I rest my case.
Caro Orlando, este vai ser ainda mais sucinto.
1 - Episteme - Apesar de velha, não deixa de ser uma ideia importante. E uma coisa é a epistemologia enquanto ramo da filosofia, de que o Orlando fala, outra é efectivamente a distinção entre doxa e episteme que se for feita apenas e só em termos de conteúdo corre o risco ou de enveredar pelo dogmatismo, ou pelo relativismo e/ou pelo construtivismo racionalista, caindo no mesmo tipo de tentativas de imposição mais assente em argumentos ideológicos. Para algo ser científico tem que ter um corpo/conteúdo sistematizado mas sem método (para os gregos, caminho) não é possível alcançar esse conteúdo e sistematizá-lo.
2 - Argumento ad Verecundiam - Já esperava que dissesse isso. Não foi lá muito original. Mas está errado. Ao contrário do que o Orlando afirma, eu não incorro nesta falácia (são mais as vezes que a denuncio que outra coisa), porquanto não me interessa a autoridade de Kukathas enquanto estudioso de Hayek mas sim os seus argumentos - que já confrontei com outros como o do utilitarismo indirecto de que Gray fala e ao qual Kukathas se refere, com a diferença entre act-utilitarianism e rule-utilitarianism de Erick Mack (que Gray e Kukathas também referem), e com os de Arthur Diamond, que mostra que as quatro éticas a que Hayek recorre - relativismo, contratualismo, darwinismo social e utilitarismo - são criticáveis nos termos anti-racionalistas (referindo-se ao racionalismo construtivista) da sua epistemologia, o que representa um problema para a sua teoria política que, de qualquer das formas, não pretendia ser normativa - nem poderia, com as tensões inerentes entre as éticas em causa. Porém, como Kukathas demonstra, o anti-racionalismo construtivista de Hayek e a sua inserção num racionalismo crítico ou evolucionista (mais próximo de Popper) acabam por refutar o aparente utilitarismo de Hayek. Contudo, isto são argumentos que, julgo, o Orlando desconhece. E que eu já me disponibilizei para lhe fornecer. O que seria da academia sem a possibilidade de citações, referências e confrontação de pontos de vista? Ainda para mais em ciências sociais. Falo de argumentos, não de autoridade de autores. Sou novato nestas andanças mas não assim tão ingénuo. Não me confunda com pseudo-engenheiros domingueiros "cainesianos" ou "krugmanianos".
3 - Então antes era o princípio da felicidade do maior número e agora já é o princípio do interesse próprio que é a base do utilitarismo? Convinha rever isso com alguma humildade, que é coisa que lhe parece faltar em demasia. Em ciência, interessam mais os problemas do que as definições ou respostas definitivas (sendo ainda impossível ter a certeza acerca da possibilidade de serem definitivas). E porventura até podem ser vários os princípios e várias as correntes utilitaristas, como o meu ponto anterior deixa antever.
Alguma abertura de espírito, pensamento crítico e humildade intelectual é o que se pede a qualquer académico digno dessa qualificação. Eu não me importo de sair da minha zona de segurança e reconhecer as deficiências inerentes à tradição filosófica onde me inscrevo. O mesmo não acontece com o Orlando, que utiliza argumentos de pretensa autoridade científica ou filosófica sem sequer se mostrar disponível para os ver confrontados. Isso não é uma postura filosófica mas sim político-ideológica e dogmática - que o Orlando me tenta imputar. Como lhe disse, se assim entender por bem, enviar-lhe-ei o material de que falo. Caso contrário, não vale a pena continuar a alimentar esta discussão. Ainda tenho muito que ler e aprender até poder argumentar com a autoridade que desejo e mesmo assim duvido que o possa fazer. Estou sempre mais no ponto de partida (de quem tem mais dúvidas que certezas) do que outra coisa e não vai ser por agora, muito menos através da blogosfera, que vou passar a ter mais certezas. E também não será através desta que chegaremos a conclusões que só um debate demorado e alongado permite. Ainda para mais quando eu assento na dúvida humilde e o Orlando na certeza arrogante, onde os alegados iluminados racionalistas-construtivistas frequentemente parecem encontrar-se - sem nunca, na verdade, discutirem entre si no concreto as suas ideias e crenças, posto que sabem no seu intímo que rapidamente começariam a entrar em desacordo (ler a desconstrução que Schumpeter faz do conceito de bem comum ajuda a entender o que digo) e perceberiam que estão mais próximos da ideologia do que pensam, filosoficamente mais próximos dos seus inimigos ideológicos do que desejariam e que, ironicamente, acabam por negar a posteriori com a sua teorização, que rapidamente degenera em autoritarismo, colectivismo e imposição coerciva de uma moral, a premissa de liberdade individual de que supostamente partem. O sempre muito citado pseudo-filósofo Olavo de Carvalho é um mestre a entrar nesta incoerência, e os seus discípulos, como o Orlando, seguem-lhe as pisadas. Gray explica bastante bem este tipo de processos e contradições em "A Morte da Utopia". É por isso que prefiro as concepções negativas do liberalismo - e do conservadorismo abstracto - em muito baseadas na ideia da sociedade aberta popperiana. Continuo a preferir as deficiências deste aos perfeccionismos dos auto-proclamados iluminados que nem sequer se apercebem das falácias em que incorrem. Se se apercebem, então são intelectualmente desonestos.
Caro Orlando,
Como lhe disse, estou com pouco tempo e não quero dispersar a minha atenção pela net, pelo que vou tentar ser sucinto e ir directo às suas duas premissas, não sem antes dedicar alguns parágrafos a algo que me parece necessário e que recorre do seu último post: filosofia não é ciência. E quando depreende que entendo por ciência apenas o que nos chega do positivismo depreende mal.
Na linha de Gianfranco Pasquino, também nós consideramos que “se a Ciência Política pretende apetrechar-se devidamente para enfrentar a especulação teórica, deve confrontar-se com a Filosofia Política e redefinir-se em relação a ela”, até porque uma das componentes fundamentais desta última é a análise da linguagem política e a metodologia da Ciência Política1.
Para além das armadilhas do cientismo e do relativismo, importa realçar que, na realidade, aquilo que distingue a ciência da mera opinião é a metodologia científica e não o conteúdo das permanentes conjecturas e refutações que enformam o corpo de postulados e premissas de uma determinada teoria e a fazem evoluir, pelo que, naturalmente, “o conhecimento obtido através de uma dada metodologia, isto é, um sistema de regras explícitas e procedimentos em que a pesquisa se baseia”2, só é válido se essa metodologia for efectivamente científica.
Como ensinou Raymond Aron, a respeito da teoria da ciência de Max Weber, “a acção científica é por isso uma combinação de acção racional em relação com um fim e de acção racional em relação com um valor que é a verdade. A racionalidade resulta do respeito pelas regras da lógica e da investigação, respeito necessário para que sejam válidos os resultados obtidos”3. Desta forma, a objectividade em Ciências Sociais está intrinsecamente relacionada com a necessidade de rigor metodológico pelo que “em qualquer pesquisa complexa e de rigor a exposição e o debate do método não são questões de mero academismo”4, até porque, como ensina António Marques Bessa, “as conclusões encontram-se organicamente ligadas aos processos aplicados e por isso mesmo a metodologia costuma ocupar com justiça um lugar próprio, como átrio de toda a posterior construção, evitando a esta abater-se como vítima das primeiras fragilidades”5.
A este respeito fico-me por aqui senão depois queixa-se que eu escrevo textos longos e de cariz enciclopédico. E agora vou directo às suas duas premissas.
A respeito da questão da neutralidade do estado, é um debate em curso, em especial entre os próprios liberais, quanto à fundamentação em termos morais, que está longe de terminado. Se é uma impossibilidade lógica ou não, parece-me ser mais uma pergunta do que uma premissa definitiva. Ressalvo, contudo, que uma coisa é o estado voluntária ou involuntariamente, em maior ou menor grau, contribuir para a formatação da moralidade. Outra é fazê-lo coercivamente - e aí, o Orlando parece esquecer-se constantemente de que para ser classificado como coercivo, à indução de um determinado comportamento corresponde a ameaça de violência no caso da sua não adopção.
Em relação à ética de Hayek, e se é certo que este subscreve várias e mesmo contraditórias, colocando em causa muitas das suas assumpções dadas as tensões entre correntes opostas, desde logo a começar pela irreconciliável tensão entre Hume e Kant, quanto ao utilitarismo tem muito que se lhe diga. Em traços gerais, Hayek utiliza vários argumentos de pendor utilitarista mas, no fim, não é um utilitarista, sendo um feroz crítico deste, porquanto este é uma teoria racionalista construtivista por excelência, que não se consegue reconciliar com a instância fortemente anti-racionalista do seu pensamento. E a este respeito, se assim lhe aprouver, providencie-me um e-mail que terei todo o gosto em amanhã tratar de digitalizar e enviar-lhe as páginas do livro de Chandran Kukathas de que lhe falei, dado que não o encontrei por aí em versão digital e que qualquer tentativa minha de o resumir só iria retirar capacidade explicativa à excelente exposição que o autor faz. A sua segunda premissa está rotundamente errada, ao contrário do que o Orlando pensa.
1 - Gianfranco Pasquino, Curso de Ciência Política, 2.ª Edição, Cascais, Princípia, 2010, p. 27.
2 - Carlos Diogo Moreira, Teorias e Práticas de Investigação, Lisboa, ISCSP, 2007, pp.13-14.
3 - Raymond Aron, As Etapas do Pensamento Sociológico, 7.ª Edição, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2004, p.480.
4 - António Marques Bessa, Quem Governa? Uma Análise Histórico-Política do Tema da Elite, Lisboa, ISCSP, 1993, p. 11.
5 - Ibid., p. 11.
(imagem tirada daqui)
Peter Singer é, alegadamente, um utilitarista, sendo, inegavelmente, um dos filósofos contemporâneos mais respeitados. Contudo, defender a esterilização da humanidade por via a alcançar a extinção, justificando tal ideia com o facto de as próximas gerações virem ao mundo para sofrer, colocando as questões “Is life worth living? Are the interests of a future child a reason for bringing that child into existence? And is the continuance of our species justifiable in the face of our knowledge that it will certainly bring suffering to innocent future human beings?”, parece-me uma idiotice de quem já chegou a um patamar em que se pode dar ao luxo de dizer o que bem lhe apetecer.
Para mim que, entre as várias influências, tenho uma inspiração randiana, a vida humana é o principal valor. E é inviolável. Creio que para a maioria das correntes filosóficas e religiões se aplica o mesmo princípio. O sofrimento continuará sempre a existir. A dor continuará sempre a existir. Aliás, é parte inegável da vida. Além do mais, é impossível afirmar com toda a certeza que as futuras gerações terão uma pior qualidade de vida que as presentes.
Ironicamente, ou não, Singer revela, nesta posição, aquele que é precisamente o principal problema do utilitarismo. Este, tem por objectivo a procura única e exclusiva da felicidade, por via de decisões racionais e utilitárias que visem maximizar o bem-estar - como se fosse possível eliminar definitivamente o sofrimento e a dor. Isto é impossível de alcançar na sua plenitude. Porque não somos completamente racionais e porque por mais cálculos utilitários que se façam, é praticamente impossível determinar qual a escolha/decisão óptima. O utilitarismo, no seu extremo, leva à estagnação e ao niilismo - é este o seu principal problema. No caso de Singer, à defesa da extinção da humanidade.
Sou obrigado, portanto, a concordar com Wesley Smith:
Não deixa de ser um interessante tema de discussão por estes dias. Mais um a juntar ao relativismo moral que grassa no Ocidente.