Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]
Montaigne, Essays, "Of Experience":
We must learn to endure what we cannot avoid. Our life is composed, like the harmony of the world, of contrary things, also of different tones, sweet and harsh, sharp and flat, soft and loud. If a musician liked only one kind, what would he have to say. He must know how to use them together and blend them. And so must we do with good and evil, which are consubstantial with our life. Our existence is impossible without this mixture, and one element is no less necessary for it than the other.
Alçada Baptista, Peregrinação Interior - Reflexões sobre Deus:
«Relato necessário duma peregrinação pessoal, não pretendo com ele ser exibicionista, se bem que viver é também ser capaz de perder um certo pudor. Quando o meu pai morreu, eu já era homem. Já tinha a maturidade que me permitia tirar da sua pessoa todas as cargas míticas e saber olhar objectivamente os seus defeitos e virtudes, e por isso soube avaliar o peso da sua grandeza humana e o significado que ela teve para mim. Algum tempo depois da sua morte, comecei a pensar que nunca lhe dissera nada disso e que a morte o levou sem que eu lhe tivesse abertamente revelado o muito que gostava dele. E se analiso as razões porque o fiz, creio que foi por pudor, por este absurdo que se apodera das pessoas e que não permite que se diga a um pai o muito que se pode gostar dele. Nos meus filhos, passa-se que deixam de me dizer que gostam de mim à medida que não são capazes de me aparecer nus. Assim se prolonga um diálogo insinuado, por suposições, por cálculo, por subjacências, quando nada devia haver de mais simples e aberto do que o diálogo de amor de pais para filhos, de homens para mulheres, de pessoas para pessoas. A literatura está cheia de insinuações veladas de seres que gostaram tremendamente de outros, mas essas vozes de amor transferem-se, curvam-se, corrigem-se, num espartilho vitoriano que nos abafa e comprime e de que a muito custo nos conseguimos libertar. Assim andamos, com o coração apertado na garrafa da vida, a bater timidade pelo gargalo da vida.»
Um telefonema. A notícia. Foi esta madrugada, agonizando entre as 06:30 e as 08:30 da manhã, que a minha querida tia-avó Amélia soltou amarras. Sabendo-a em doença terminal há semanas, uma daquelas gravíssimas situações dormentes e insuspeitas as quais, mal se manifestam, em menos que nada aniquilam a vítima, tive, na passada Quarta-Feira de Cinzas, um impulso interior poderoso para visitá-la. E fui. Foi como se todos os meus amados mortos do lado materno — o meu Avó Joaquim, a minha Avó Ana, os brasileiros meu querido Tio-Avô Manoel e a minha Tia-Avó Madalena, a minha querida tia-Avó Madrinha Emília, gente que amei e me amou [a Tia Madalena partiu em Agosto do ano em que nasci] —, gerassem no meu coração um ímpeto de despedida e de consolação. Ai de mim se não obedecesse ao que me gritava o íntimo.
Ao influxo das suas vozes vivas, meu coração-vela panda foi ajoelhar-se ao pé daquela lucidez bruxuleante, tomar-lhe a mão, beijá-la, beijá-lá muito, muitas vezes, e à sua fronte, beijá-la muito, muitas vezes, dizer-lhe que me era querida, dizer-lhe que tudo correria bem, invocar numa prece Jesus, o Deus Vivo, Espírito Consolador da Estirpe Humana, ser, enfim, abençoado pela irmã da minha querida Avó Ana, no Seio de Deus há vinte anos.
Cheio de graça e força, Estêvão fazia extraordinários milagres e prodígios entre o povo. Ora alguns membros da sinagoga chmada dos Libertos, dos cireneus, dos alexandrinos e dos da Cilícia e da Ásia vieram para discutir com Estêvão: mas era-lhes impossível resistir à sabedoria e ao Espírito com que ele falava (...) depois à uma, atiraram-se a ele e, arrastando-o para fora da cidade, começaram a apedrejá-lo. As testemunhas depuseram as sua capas aos pés de um jovem chamado Saulo. E, enquanto o apedrejavam, Estêvão orava, dizendo: "Senhor, Jesus, recebe o meu espírito". Depois, posto de joelhos, bradou com voz forte:" Senhor, não lhes imputes este pecado". Dito isto, adormeceu."
Actos dos Apóstolos, 6, 8-51
A história de Estêvão, o apóstolo helenista martirizado pela sanha farisaica do judaísmo colonizado, tem vários ingredientes que, até certo ponto, assemelham o seu percurso biográfico ao de Jesus Cristo: o mesmo apostolado radical e descomprometido, a Graça divina esparramada na vocalização do exemplo evangélico, o martírio cristãmente arrostado, encarando a Morte como o passamento para a casa de Deus. Estêvão foi, com temeridade e sentido de Justiça, um dos precursores do movimento religioso que doravante cresceria em vigor e dimensão, arrastando o Império Romano na sua vaga ouriçada. A narrativa de Estêvão é, em grande medida, uma metáfora da incompreensão humana. Da incompreensão que tolhe e desquebra, da razão que falha e obscurece. O Homem, o animal racional por excelência, pouco dado amiúde às virtudes da perfeição e da ponderação, é o paradigma mais cristalino da derrota. Talvez não tenhamos sido feitos para a derrota, como disse o derrotado Hemingway, talvez a perda e o temor ao desastre não sejam mais do que um tropo do triunfo iminente, talvez nós sejamos um ameno, e escondido, princípio da Morte, talvez e muitos talvez, porém, a vida, na sua imensidão de veredas e caminhos díspares, dispõe o alvedrio do Homem no seu justo lugar. Nós escolhemos o nosso caminho, mas, nada nem ninguém, é capaz de recolher-nos do Mal. Deus fez-nos com os princípios da Vida e do Bem conglobante, mas o Homem é livre de escolher o seu projecto vital. Fá-lo, e no fundo, é derrotado. Derrotado na dureza encrespada dos desígnios gorados, na perda dos referentes orientadores de todo um percurso, no esgotamento do amor e da amizade. Estêvão, o pioneiro da martirização infligida aos esperançosos, ensinou-nos que, por mais que a derrota imponha o seu véu sobre nós, o livre alvedrio, a escolha conscienciosa e o amor descomprometido, são mais do que uma opção, são uma realidade que cabe-nos a nós agarrar e segurar. Podemos perder a partida, mas não a alfombra de dignidade que ainda nos resta. E essa dignidade é o verbo do amor e da amizade. Puras ilusões ou não, e muitas vezes são-no, com incompreensões e isolamentos inelutáveis, o amor e a amizade são a única ilusão que nos resta, porque, no fundo, a vida é, como dizia Lucas, "mais que o alimento e o corpo mais que o vestuário" (Lucas, 12, 23-24).
Sente-se no ar o princípio do fim de qualquer coisa. Tudo encareceu, desde as amizades até ao amor. A ruína e a desgraça tomam conta de muitas famílias. Muitos lares passarão, neste ano que hoje começa, dificuldades ingentes, sofrimentos múltiplos e desesperos vários. O medo está bem presente nas nossas vidas. O medo de que tudo se perca, o emprego, a família, o bem-estar duramente almejado durante anos de porfia. Entrementes, o Leviatã continua gordo, poderoso e activo, afogando tudo e todos com a impostocracia do Estado todo-poderoso. Nada muda, nem mesmo os rostos da ruína. Não sei o que este ano reservará a muitos de nós, não sei sequer se chegaremos todos vivos ao final do presente ano para contar a estória das nossas vidas, o que sei, e já é muito, é que o país está gasto. Cansado e exausto. Prestes a rebentar de ódio e revolta. 2013 será um ano perigoso, um ano em que o regime, a partidocracia, a oligarquia da finança e os prebostes da mesmice serão colocados permanentemente em causa. Nada será como dantes. As imposturas serão desnudadas e as mentiras verberadas. Espero que o torniquete fiscal seja combatido com fé e zelo por todos aqueles que não se revêem no esbulho do nosso futuro. Espero mesmo que algo mude para que tudo não fique na mesma.
Podem apontar-se inumeráveis defeitos à falta de primor e à fugacidade alienante das redes sociais. Nem tudo o que luz é ouro. Contudo, de quando em vez, as redes sociais conseguem surpreender-nos pela positiva. O YouTube é um caso paradigmático, servindo basicamente para tudo. Democratizou o disparate, expandindo os dividendos da visibilidade às massas ignaras. Porém, no meio de tanta parvoíce escancarada, ainda há espaço para verdadeiros tesouros, que, sem muito custo, podem ser encontrados e visionados nesta rede social. Um bom exemplo é o filme "O Gabinete do Dr. Caligari". Uma das grandes obras-primas dos primórdios do cinema - produzida nos famosos estúdios UFA -, com referências estéticas que vão do cubismo ao expressionismo alemão, este filme influenciou como poucos o chamado "Film Noir", estabelecendo um padrão que seria amplamente seguido nos anos posteriores. Quando vi pela primeira vez este filme fiquei razoavelmente admirado com a pormenorização e o toque de génio impostos por Robert Wiene. Nessa época, o cinema alemão foi palco de uma revolução artística gizada por nomes como Pabst, Fritz Lang, e Murnau, entre outros, o que pode, em grande medida, surpreender alguns, mas a verdade é que os alemães, por mais defeitos que tenham e têm, já produziram cinema da mais alta craveira artística, sobretudo o temporão. O enredo do filme tem múltiplas ressonâncias políticas, o que correspondeu, de certo modo, à intenção primeva dos argumentistas. Houve, aliás, quem dissesse que esta obra era uma espécie de crítica arcana do totalitarismo larvar que já nos idos de 1920 assoberbava a nação germânica. Independentemente disso, a função que Caligari assume no enredo é particularmente sugestiva. O papel que ele desempenha na trama, a forma como urde os assassinatos do sonâmbulo, faz-nos recordar, com algum desalento de permeio, que o poder é sempre a via mais rápida para a corrupção e o abuso. Sem freios nem contrapesos, o poder descarnado corrompe e mata. Foi sempre assim. Um filme destes é matéria obrigatória não só para os cinéfilos de plantão, mas, também, para todos aqueles que desejam a limitação do poder. Do poder que arruina a Vida. Porque, como proclama o Dies Irae, "nil inultum remanebit". Tudo tem castigo, especialmente o poder oculto e corrompido.
Como toda a gente se recordará, o Muro de Berlim foi construído por razões humanitárias para evitar a continuação da fuga maciça dos habitantes da parte ocidental da cidade para o paraíso socialista da ex-RDA. Êxodo semelhante parece perspectivar-se na actual Rússia de Putin e Medvedev, a avaliar por esta notícia do Economist.
Em Portugal a idade é um posto. Até para a deselegância. E ignorância. Pena encontrar ambas onde menos se espera.
A falta de notícias sensacionais, tem como consequência, a frenética procura de um sucedâneo capaz de interessar os vigilantes da informação. Oportunamente, o Cardeal-Patriarca alertou quanto às possíveis dificuldades que as mulheres cristãs terão de enfrentar, no caso de um casamento com um muçulmano. Nada de novo, nada de estranho, pois é uma verdade de La Pallice, uma trivialidade. E assim, já existe tema para os grasnadores do costume. Temos caso!
De imediato, deu-se início ao empilhar de munições e os artilheiros de serviço enfiaram os escorvões de limpeza pelos canos adentro, preparando-se para uma cíclica barragem sobre os alvos do costume: a intolerância e o fanatismo religioso.
Imaginemos um caso típico por essa Europa da qual somos parte interessada. Uma menina da zona das Telheiras sai um destes sábados à noite e após umas kaipiroskas no Bairro Alto, decide acabar a festarola no Kremlin, onde a horas avançadas, conhece um "agente comercial estrangeiro", de passagem por Lisboa. O tipo tinha boa pinta e dinheiro a rodos, não a deixando seca um segundo sequer. Bebida atrás de bebida, lá lhe foi bichanando aos ouvidos, as maravilhas do paraíso terreno que é o cosmopolita Dubai, terra de todas as promessas.
O contacto prossegue por e-mail ao longo de meses e lá para o fim do ano, o tal ricaço volta a Lisboa, carregado de presentes caros, declarando querer passar umas boas férias neste país que ..."tanto tem em comum com a sua gente e cultura"... Inebriada de mimos que excitaram a sua insaciável sede griffeuse, a menina apaixona-se e casa-se de surpresa, declarando a uma família apreensiva, ter decidido partir com o marido para o Dubai. Orgulhosa com a subida de estatuto, diz que ficará à frente do escritório dos negócios da empresa da qual também já se considera co-proprietária.
Imagina-se o resto da história: assim que chega à nova casa, são-lhe retiradas as colecções de mini-saias, t-shirts stretch, botas altas, tops e jeans. Interditam-lhe a amostragem pública do umbigo piercingado e claro está, nada de saídas à rua sem ser devidamente acompanhada por uma das tchadoradas cunhadas. Conduzir o carro americano do esposo? Alto lá... Cabelos soltos ao vento e de provocantes madeixas descoloradas? Nada disso! Idas à praia em fato de banho? Nem pensar... Kaipiroskas, capirinhas, shots, vodkas-melão? Qual quê?!
O trabalho no escritório é tão real como as miragens de palmeiras em oásis no deserto do Hadrammaut. Sobram-lhe isso sim, pilhas de panelas e pratos para lavar e um extenso booking de eventos sociais intramuros, nos quais aliás não participa. A familória onde pontifica uma sogra permanentemente envelopada com tarja negra, faz-lhe a vida num inferno, cobre-a de exorcismos e acaba por arrastá-la para uma nova crença, a única, a verdadeira. Erguem-se os braços ao céu, arrancam-se cabelos, línguas hiper-musculadas forçam o conhecido grito de guerra lalalalalalalalalalalala-uh..., até ter cessado a resistência. Acabaram-se os contactos via internet, os telemóveis com os quais falava com a antiga família de Lisboa. As cartas são proibidas, pois a língua portuguesa é incompreensível. Nada de férias na Europa, nada de música ímpia e decadente. O bebé que está para nascer terá um nome escolhido pelo pai - Osama - e jamais conhecerá os avós infiéis.
Não tem qualquer hipótese de contactar com o pessoal diplomático português, pois está sempre acompanhada. Nem sequer pode mesmo atrever-se a desabafar com as amigas que por lá fez, pois estas consideram-na abençoada por tal vida ter encontrado. É hoje uma mulher decente, pura, limpa da vergonha que o Ocidente lhe ferreteou à nascença. Já não é a Cátia Solange de outrora, mas sim a Zuleika, noor dos olhos do seu cada vez mais ciumento esposo.
Um dia, por acaso, encontra num restaurante do centro comercial, um grupo de portugueses bronzeados e barbudos, devidamente acompanhados pelas amigas de férias. Aproveitando o momento de um passageiro acanhamento da cunhada mais nova, entabula conversa e narra numas poucas frases, a desdita da sua vida. Erro fatal, ilusão perdida. O tal grupo de turistas que vinha passar uns dias de lazer no pequeno empório comercial e financeiro da península arábica, era muito compreensivo para com as "diferenças culturais, sociais, económicas e políticas" daquela gente com um ..."tão grandioso passado civilizacional e que apenas lutava neste mundo pelo seu direito à identidade"... Disseram-lhe mesmo que a Cátia Solange, ou melhor, a Zuleika, ainda estava muito influenciada pela propaganda de séculos de ditames católicos e de preconceitos imperialistas:
- ..."na Europa ainda vivíamos em cavernas e esta gente já tomava banhos no hammam"...,
O que a arrependida Cátia não poderia imaginar, é que findas as férias, aquele mesmo grupo lá voltaria aos seus alfacinhas afazeres quotidianos: compras no Colombo, jantares no Papa Açorda, um ocasional swing, uns cheiros na coca, umas farras de ladies-nights, tertúlias políticas na sede do Bloco e claro está, intermináveis discussões acerca das maravilhas do multiculturalismo e daquilo que verdadeiramente importa a todos: os direitos das mulheres (europeias e apenas essas, claro!), as questões fracturantes, o fim do capitalismo, o essencial papel reservado à intelectualidade e last but not least, a necessária e urgente laicização absoluta do Portugal moderno: é que estamos a um ano do centenário da república!
A 9 de Outubro de 1967 tombou em La Higuera, nas selvas bolivianas, Ernesto Che Guevara morto pelo exército boliviano Tinha 39 anos.
Hoje em dia continua a ser defendido por uns e atacado por outros. O certo é que ninguém consegue ficar indiferente à sua vida revolucionária. O que representa Guevara? A máquina de matar, friamente movida a fanatismo ideológico? Ou o jovem sonhador, compadecido pelos pobres? Um Hitler de boina e barbas, ou uma Madre Teresa de metralhadora?
Para uns, a sua morte marca o fim da grande ilusão de Fidel Castro de revolucionar o continente americano. “Esta é a história de um fracasso” – assim começou Guevara o seu relato da expedição ao Congo, em 1965. De facto, para alguns, esta é a história fracassada de quase tudo em que se meteu. Para começar, a sua administração da economia cubana, como presidente do Banco Nacional e Ministro da Indústria. Em 1959, Cuba era o segundo maior produtor mundial de açúcar. O papel de Guevara, no seu novo país, foi o de Mugabe no Zimbabué: lançar as bases para fazer de Cuba uma ruína, que só os subsídios soviéticos aguentaram. Além das estatizações em massa, decidiu abolir todos os incentivos económicos ao trabalho. Em 1965, quando abandonou o governo, o PNB per capita afundara-se. Tudo faltava e havia filas para tudo.
Em 1975, no 1º congresso do Partido Comunista de Cuba, Castro admitiu que, no tempo de Guevara, a liderança cubana desprezara a “ciência económica”. Mas o seu desprezo não se ficara por aí: chegara também à história. E se no primeiro caso pagaram os cubanos, no segundo foi Guevara quem pagou, quando saiu de Cuba como caixeiro-viajante da revolução. A doutrina soviética da conquista do poder passava então por arranjar um partido, fazer propaganda, dirigir sindicatos e infiltrar o estado. Guevara veio vender ao mundo um método novo. Dispensava partidos e sindicatos. Era assim: no estado a subverter, de preferência uma ex-colónia tropical, estabelecia-se um grupo de comunistas armados em parte remota do território, e mal estes provassem que o exército regular não era capaz de os exterminar, as massas camponesas iriam engrossando o “foco” guerrilheiro inicial, até este avassalar as cidades. Tinha sido assim, segundo Guevara, que ele e Fidel haviam conquistado Cuba entre 1956 e 1959.
Depois de 1956, do XX Congresso do PCUS e da invasão da Hungria, ninguém que quisesse ser levado a sério entre os intelectuais ocidentais podia entusiasmar-se com URSS, como acontecera no tempo de Estaline. Falou-se então da “morte das ideologias”. A revolução cubana mudou tudo isto. Subitamente, o comunismo renascia como uma epopeia ao ar livre, num país de praias exóticas, sob o comando de jovens literatos barbudos, sem partido nem burocracia. Ameaçada pelas invasões e embargos dos EUA, a simpatia pela revolução cubana ia além do comunismo, abarcando muitos nacionalistas ocidentais, ressentidos com a liderança americana.
Finalmente, este comunismo latino assentava numa versão moderna do mito do “bom selvagem”: o do “bom guerrilheiro”, igualmente puro. Guevara, jovem (tinha 31 anos em 1959), bonito, vestido de maneira diferente, fumando enormes charutos, foi uma das primeiras encarnações do “cool”. Mais do que comunismo, foi o novo consumismo da década de 1960, focado na juventude, na irreverência e no exotismo, que fez dele uma celebridade. Ao novo sistema de consumo, interessava vender Guevara como um romântico desalinhado. Em 1966, partiu para a Bolívia acompanhado por quadros importantes, e em comunicação com Castro. A aventura não era um capricho, mas parte da estratégia de impor Cuba como a vanguarda revolucionária da América Latina. É verdade que Guevara deu a entender que apreciava mais a China do que a URSS (a quem nunca perdoou por não ter usado armas nucleares contra os EUA em 1962).
Para muitos cubanos, Guevara é apenas um dos fundadores de uma das maiores prisões do mundo, a ilha de Cuba. Assim o relata o livro de Reinaldo Arenas, Antes que anoiteça. O “povo” foi a grande companhia imaginária de Guevara. “Sem o apoio da população” nada podia ser feito, repete vezes sem conta. Mas essa população não era a das pessoas que existiam. Era um povo teórico, que o próprio Guevara se propunha criar submetendo a população à hierarquia e disciplina rígidas do exército revolucionário. Fora da hierarquia e da disciplina revolucionária, o povo não lhe interessava: “a democracia revolucionária não se exerce na condução dos exércitos em nenhuma época e em nenhuma parte do mundo, e onde isso foi tentado, acabou em fracasso”. Fala muito dos “camponeses pobres”. Mas diante deles, no Congo e na Bolívia, percebeu que não podia comunicar com eles. No Congo, porque os revolucionários cubanos que o seguiam nunca levaram a sério os nativos: “Os nossos eram estrangeiros, seres superiores, e faziam-no sentir com demasiada frequência”. Ele, porém, não era melhor, quando escrevia que viera para “cubanizar os congolenses”, impor ao seu desleixo a regra ascética do exército revolucionário (ficando furioso quando julgou assistir à “congolização dos cubanos”, contaminados pela anarquia local).
Na Bolívia, os camponeses que o viram e ao seu bando chamaram-lhes, como Guevara notou no diário, “os gringos”. Era o nome dado aos brancos dos EUA. Guevara, o inimigo dos gringos, era um gringo. O apelo de Guevara, como reconheceu Debray em A Guerrilha do Che, esteve sempre confinado à “pequena burguesia democrática das cidades” - de facto, aos estudantes, filhos das classes média e alta.
No Livro Negro do Comunismo, Stéphane Courtois dedicou duas páginas ao “reverso do mito” de Guevara, denunciando os fuzilamentos que ordenou em Cuba. Guevara ter-se-ia divertido com esta acusação. Ele próprio descreve os fuzilamentos, inclusivamente as reacções das vítimas no momento final, com palavras de apreço por aqueles que mostraram “serenidade”. Tudo para ele estava justificado desde que feito, sem outras intenções, em nome da criação de “um homem novo”.
Guevara queria transformar as pessoas. Nunca lhe interessou percebê-las.
No entanto, para muitos outros, Che Guevara é lembrado pelo exemplo de desprendimento, idealismo e determinação em sua luta pela justiça social e liberdade e na construção do “homem novo”. A sua vida, as ideias e, sobretudo, a acção revolucionária são recordadas no mundo inteiro por todos aqueles que continuam a indignar-se contra as desigualdades sociais e contra as opressões de todos os tipos.
Nascido na Argentina, quase meio século depois da sua morte, continua a despertar simpatia e admiração em todo o mundo. Por que é que a sua imagem insolente continua viva, como a desafiar ainda aquela ordem que um dia ousou derrotar?
Parece-me que três razões mantêm viva a memória de Che Guevara: os valores, o exemplo e sua trajectória de revolucionário latino-americano.
Os valores do Che representam o vigor e a rebeldia que tanto caracteriza milhões de jovens em todo o mundo. A imagem do Che está presente em t-shirts, bonés, bandeiras, em tatuagens nos braços e no corpo dos jovens, num dos maiores fenómenos políticos de que se tem notícia. Mas, isso não é o principal. Apesar de se tornar uma “marca conhecida” em todo o mundo, Che não tem nada a vender. O seu único “produto” são os seus valores, as suas ideias, o seu exemplo. Ainda hoje é isso que desperta o sonho e a rebeldia de milhares de pessoas em todas as latitudes.
Che viveu concretamente e ousou levar os ideais até as últimas consequências. O que Che deixou foi uma combinação entre a teoria e a acção prática, a formulação e o exemplo. Como ele mesmo disse: “quando o extraordinário se transforma em quotidiano é a revolução”. O filósofo francês Jean Paul Sartre disse que “Che viveu como o homem mais completo do século XX”.
Nas tarefas da revolução Che Guevara foi também um estadista. Nesta condição, foi responsável pelo Instituto Nacional de Reforma Agrária, pelo Banco Nacional de Cuba sendo depois Ministro das Indústrias.
É nessa condição, que viaja pelo mundo, no combate para romper a sabotagem e o cerco económico, político, diplomático, militar, ideológico e cultural movido pelo imperialismo contra a revolução. É também nesse quadro que ele comparece à famosa Conferência da OEA em Punta del Este, convocada para condenar Cuba e distribuir financiamentos americanos aos governos leais. É nesse evento que mostra sua habilidade e firmeza, passando de acusado a acusador do imperialismo.
É amplo o leque de assuntos aos quais o revolucionário Ernesto Che Guevara procurou responder. Um dos aspectos mais importantes - e certamente um dos que lhe conferem uma marca mais nítida entre os maiores revolucionários que a humanidade produziu - diz respeito à sua preocupação com o que tem sido denominado "humanismo revolucionário".
Nesse terreno, Che Guevara não foi somente o militante que não se intimidou em sublinhar: "deixe-me dizer, com o risco de parecer ridículo, que o verdadeiro revolucionário é movido por grandes sentimentos de amor". Ele foi entre os grandes socialistas deste século um dos que se preocupou por destacar a necessidade da construção do homem novo como parte do processo de revolução da sociedade em direcção ao comunismo. Ele negava que esse objectivo pudesse tornar-se tangível com base nos interesses individuais herdados do capitalismo. Era por isso que valorizava a educação como elemento decisivo na transição socialista e atribuía a valores como solidariedade, disciplina, honestidade, integridade pessoal, importância central nessa caminhada. O Che mais do que ninguém destacou a superioridade humana daqueles que dedicam suas vidas à revolução, frente àqueles que só cuidam de seus interesses particulares. E o poder de convencimento desse discurso moral elementar repousou sempre na franqueza transparente de suas palavras: tratava-se de alguém que nada possuía e nada pedia a não ser melhores condições para continuar lutando.
Che Guevara não se contentou em ser um dos mais prestigiados membros do Estado de Cuba. Como consequência do seu combate revolucionário e da necessidade de expandir o processo transformador na América Latina e no mundo, foi ao Congo, e mais tarde à Bolívia, para por em prática os seus ideais. Um militante revolucionário, que certamente cometeu erros, precisamente porque "ousou lutar, ousou fazer e ousou vencer". Justamente por isso e por ter perseguido com tanta intensidade as grandes causas, ele cometeu erros políticos, incorreu em avaliações que posteriormente revelaram-se falhas e assim por diante. Características pois de uma personalidade e de uma obra políticas (e não de uma figura e de uma doutrina místicas) que permanecem vivas, como produtos humanos.
A luta do Che continua actual. É o seu exemplo e, sobretudo, a possibilidade de “fazer o caminho no caminhar” que deixa viva a sua trajectória exemplar. Che Guevara ousou inventar um mundo e um homem novo. O lugar de Che Guevara é do homem que dedica sua vida ao combate contra todas as formas de injustiça e opressão que possa manifestar-se ontem e hoje. O seu humanismo libertador e revolucionário não deixavam dúvidas. E foi esse seu principal legado, escrito como mensagem em carta aos seus filhos e às futuras gerações: “a mais bela qualidade de um revolucionário é sentir profundamente qualquer injustiça cometida contra qualquer pessoa em qualquer parte do mundo.”